terça-feira, 29 de setembro de 2015

Vincerò!


Nessun Dorma
Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti
(Os Três Tenores)
com a
Orquestra Filarmónica de Los Angeles
Los Angeles, Califórnia, 1994

Há Dias Assim

Há dias assim, que é como quem diz, de merda. Podia ter evitado o vernáculo, mas não fui capaz. Estou demasiado desiludido comigo próprio. Esta noite dormi pouco, muito pouco. Já me deitei tarde, o meu sono teve intermitências, e depois acordei cedo. Não conseguia de todo tentar ficar a dormir mais tempo. Quis ficar bem acordado, com boa cara, por isso bebi o habitual espresso diário e meti-me no duche. Fiz-me cheiroso por completo, queria causar a melhor impressão possível. Não sabia se conseguiria vê-la imediatamente após a minha chegada, por isso levei a minha Moleskine e o tablet, para me distrair no entretanto.
Não me recordava de onde tinha deixado o carro desde domingo, dei uma pequena volta a pé ao quarteirão, até que enfim consegui encontrá-lo. Sendo aquele tipo cheio de sorte de que me gabei sempre, tenho um carro estacionado em segunda fila, justo atrás do meu. Achei, no entanto, que não valia a pena perder energia irritando-me com esta questão, por isso não fiquei a buzinar continuamente para chamar à atenção. Simplesmente apertei o volante duas vezes, muito brevemente, e o chico-esperto, proprietário da viatura, lá acabou por chegar atrás, mas ainda vinha com expressão de incomodado. Temos pena, atrás dos outros não é lugar para estacionar.
Quando enfim segui em frente, senti o presente de aniversário a baloiçar na espaçosa bagageira. Já tem semanas de atraso, mas não havia maneira de entregá-lo no próprio dia. E também não era hoje que o faria, o embrulho é grande e dá nas vistas pelo género de presente que é. Pensei, contudo, que era suave ao toque e não havia de se magoar muito até à entrega, que não sei quando acontecerá.
Não havia trânsito, por isso avancei calmamente até ao cais onde repousa o submarino pintado com uma cor bastante característica. O coração palpitava-me à medida que me movia rumo ao seu interior, passado o portão principal. O intervalo é às 11h00, mas hoje as coisas não estavam ainda a funcionar como deviam. Foi isso que me escapou e o que deitou tudo a perder, claro. Uma sessão qualquer logo de manhã, uma visita cultural pela zona à tarde. Não é que aquele particular concelho seja rico em cultura, mas não quero descriminar.
O que é que acontece, então? Vejo toda e qualquer pessoa, tanto recrutas como veteranos, uns que já conheço há muito tempo, outros que jamais vislumbrei em toda a minha vida, mas a ela... nem pensar. É claro que tenho outro propósito, como seja ir à fonte de conhecimento adquirir uns títulos para o meu ensaio sobre o actor, mas essa parte é perfeitamente secundária. Tal como em Janeiro de 2014, exactamente um mês depois de ter visitado Londres, mas sem neve, apenas uma imensa escuridão às 16h00, devido à latitude. Apaixono-me à primeira vista por uma miúda britânica que vejo no metro. Os jornais gratuitos, distribuídos na rede de transportes, fazem até pouco da situação. Têm uma secção designada Rush Hour Tube Crush, para que quem não foi capaz de falar com a pessoa por quem se interessou possa descrevê-la, descrever-se e perguntar se podem voltar a encontrar-se e tomar um copo. Na altura, tentei de tudo. Aderi a um grupo chamado Meet People in London, no Facebook, descrevendo num post aquela rapariga e dizendo que não estava capaz de esquecê-la. Pedi ajuda a imensa gente, que me sugeriu também que tentasse anunciar gratuitamente em sites de "perdidos e achados", mas isso era demasiado rebuscado. Além do mais, para um romântico incontrolável como eu, não havia nada melhor do que regressar, e o mais depressa possível. Não ando a nadar em dinheiro, é um facto, pelo contrário, estou a investi-lo no Doutoramento, mas senti que devia também investir na minha felicidade pessoal, ao invés de exclusivamente académica.
Assim, justamente, um mês depois regresso ao Reino Unido e fico mais tempo. Em casa desculpo-me dizendo que vou a uma entrevista de trabalho, mas a razão principal não é essa, obviamente. Tenho todos os detalhes perfeitamente memorizados na minha cabeça. Ela entrou na composição em Trafalgar Square, ou Charing Cross, que dá no mesmo, como eu, e saiu em Baker Street, como também eu saí para o transbordo com a Hammersmith & City, sendo que vínhamos ambos na Bakerloo. Tudo isto aconteceu entre as 16h30 e as 17h00. Mas meia hora era uma margem muito curta. O que é que faço? Saio bem vestido, perfumado, dou uma volta pela National Gallery, depois pela Portrait Gallery, enfim, vários sítios onde passar o tempo e aprender alguma coisa. Um pouco antes da margem, desço para a estação. Não tomo logo o comboio, não ando de trás para a frente, mas sento-me no banco da estação, encarando a linha, hipnotizando a mim mesmo tentando focar-me no mais ínfimo pormenor que me permita identificar aquela pessoa. O problema é que, a meio da estação, a composição passava ainda muito rápido antes de parar e abrir as portas. E claro que, à medida que a hora de ponta se aproxima, tudo se torna excessivamente complexo de controlar, são centenas de pessoas de uma só vez. Tem de vir um membro do pessoal, inclusivamente, com o único propósito de falar através de um dispositivo que envia a sua voz para os altifalantes para avisar que o comboio está a chegar ou de partida. Usa uma raquete que levanta dentro do ângulo de visão do maquinista no retrovisor afixado à frente, indicando que toda a gente está empacotada e pronta para seguir viagem.
Num dos últimos dias, mais para o final da semana, inverto a estratégia e vou à hora de abertura do metro para a estação. Nem sou capaz de recuperar o sono. Levo uma folha de papel à frente a dizer "Free Hugs!", é a mais pura verdade, só para disfarçar. A minha busca continua, mas sem sucesso. Tenho de inevitavelmente desistir.
Também hoje desisti, mas existe uma diferença em larga escala. Quanto à miúda do metro, jamais soube o seu nome, onde vivia, se estudava ou trabalhava e onde, e é claro, nunca trocámos uma palavra. Ela não me conhecia de lado nenhum. Eventualmente diria que era louco, senão um creep, mas isso são riscos que se correm. Ninguém me impede de executar uma demanda em busca do amor, mesmo que internacional. Os custos não são nada, comparados com os eventuais resultados. Já o disse, sou um romântico incontrolável, faço o que for preciso, se tenho a certeza do amor que me corre nas veias. Relativamente à minha Bonequinha, sei o seu nome, sei de onde vem, sei o que faz, sei onde estuda. Mas há sempre problemas de comunicação. Não tenho o número de telefone dela, não lho pedi, não posso trocar mensagens consigo, perguntando se posso vê-la, e deixar mensagens no Facebook não me serve de nada, não tem sinal para recebê-las.
Ora, se sou capaz de me meter num avião e ficar hospedado quase uma semana útil num hotel para entrar naquilo a que eles chamam wild goose chase, sou perfeitamente capaz de me meter no carro e conduzir cerca de dez minutos até ao cais, quantos dias forem necessários.
O Outono já aí está, de porta fresca entreaberta, e eu tenho um chá para tomar e aquecer-me.
Já chega de perdermos tempo.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Sopro

   Peguei no meu bloco de notas, uma simples «Moleskine» de capa preta, e comecei a rabiscar algumas linhas ligeiramente desconexas que acabavam por fazer algum sentido na minha mente, tendo em conta a previsão que eu fazia ao agrupá-las e associando-as a outras linhas que pouco tinham ainda de concreto.
   Foi só com o desenhar do lápis sobre as folhas que fui criando algo de visível, que já começava a ter nexo, embora fosse bastante subtil, como é meu característico quando me ponho a rabiscar sem fazer uma ideia racional daquilo que pretendo que saia.
   Isto porque, decidindo e pensando melhor sobre qual seria o ponto de partida mais apropriado, consegui arranjar um começo. Achei que aquilo que levava a mim próprio querer executar um desenho daqueles, sendo que desenho nem sequer fora nunca o meu forte, seria fazer uma coisa diferente do resto, por muito bom que esse resto já tivesse sido.
   De todas as palavras que escolhera para fazer composições anteriores a esta (sobre a qual tenho vindo, justamente, a compor a descrição), atingiu-me de repente uma qualquer inspiração divina de que estas linhas em questão formariam a palavra perfeita, a supra-sumo de todas as outras, sinónima de todos os temas sobre os quais até então escrevera e que o futuro me garantia que continuaria a escrever.
   Não queria acreditar que entrara, ao longo da experiência obtida na criação destes curtos, mas no entanto fortes trechos, na mais óbvia de compreender, na mais simples e no entanto na mais rica e essencial palavra que poderia ter encontrado em todo aquele tempo.
   Assim, para não esborratar as folhas de papel quando as dobrasse ou quando passasse as costas da mão por cima para remover os detritos da grafite, suspendi propositadamente a continuação da elaboração do desenho que me fascinara naqueles poucos minutos e afiei-a o melhor que pude, de modo a deixá-la sem uma superfície acidental que comprometesse a fina espessura de cada linha que, agrupada com a sucedânea e por diante, viria a formar um desenho perfeito, apesar de eu não ser uma pessoa assim tão qualificada em desenho que pudesse testemunhar a perfeição do mesmo, embora atributos e classificações fúteis não interessassem propriamente para o caso, porque nem sempre é preciso arranjar grandes explicações racionais para procurar esclarecer uma coisa que nem é racional de todo. Até porque não são os olhos nem o cérebro, elementos errados do tribunal plenário das sensações, que verdadeiramente são responsáveis por aquilo que percepcionamos, e isto acontece porque são inseparáveis do julgamento e dos juízos de valor. Percepcionar assim o mundo sob a pressão de uma opinião racional e viciada não é saudável.
   No fundo, interessa ver com o coração. Não é necessário que isso seja fisicamente possível, porque não o é, mas... Será relevante? Seguramente não. Ainda bem que conseguimos fantasiar e filtrar a realidade que nos rodeia, senão... Viver sem sonhar não teria metade da graça que realmente tem.
   Apropriadamente afiado o bico do lápis que rolava entre as pontas do meu polegar e do meu indicador direitos, prossegui naquilo que inicialmente era só uma ideia abstracta, como o são todas, mas aquilo já se tornara concreto demais para pôr de parte e para esquecer o seu valor.
   Foi então que suavemente deslizei, harmoniosamente formando curvas em todas as direcções. As linhas extra que tinham ajudado à formação das linhas essenciais, apaguei-as muito delicadamente com um canto da borracha que propositadamente abrira naquela ocasião, para não correr o risco de, como disse antes, injustamente borrar o papel e torná-lo menos apetecível.
   No final, vislumbrei aquilo que conseguira produzir. Levara ainda menos tempo do que as minhas habituais produções levavam, mas nem por isso deixou de ser, porventura, mais interessante.
   Esse desenho, como previra, formara um nome.
   Um nome, tão simples como respirar.
   Um nome.
   O seu nome.
   Reproduzi a sua sonoridade com a voz para dentro, para que não vacilasse, com a emoção que de repente me atingira.
   Era de noite, já tarde.
   Fiquei a saborear cada letra como chocolate quente de diferentes sabores, até enfim adormecer em paz.

O Encontro (2015) | 4.ª Parte

   Acabávamos de chegar a um dos restaurantes mais luxuosos da cidade, o Wolfgang Puck Bar & Grill, na W. Olympic Blvd. Era uma escolha agradável para qualquer situação, independentemente do seu cariz. Incorporava vários géneros de cozinha de todo o mundo e tinha um aspecto absolutamente fenomenal. Não admira que a Bonequinha tivesse arregalado os olhinhos em espanto. Inquiri-a relativamente ao gosto que tivera quando escolhi o Wolfgang, procurando saber se fora uma boa opção.
   - Estás a brincar? Este sítio é lindo!
   E era, efectivamente. Aguardámos pelo mâitre para nos encaminhar para uma das várias mesas. Optámos pela mesa do canto, não necessariamente mais resguardada, porque havia muitas pessoas próximas de nós, mas não exactamente coladas umas às outras. De todos os modos, podíamos pôr-nos à vontade, ninguém falava Português e, se porventura apanhassem um ou outro vocábulo, com certeza diriam ser Espanhol e poderiam eventualmente tentar perceber sobre que estaríamos a conversar, mas lá para o meio de uma qualquer frase, tornar-se-ia imperceptível, até para os latinos. Com a experiência que temos de Espanha, já se sabe que ninguém se dá ao trabalho de comparar uma língua com a outra e acaba por dizer "perdón, pero no te entiendo".
   O ambiente luminoso da sala encontrava-se reduzido, dependendo essencial-mente da curta projecção da chama de cada uma das velas acesas. De um lado da mesa, um longo e contínuo sofá, mais confortável, para o qual a dirigi. Só não pude executar o cavalheiresco gesto de afastar o assento para deixá-la acomodar-se porque não se tratava naturalmente de uma cadeira, nem tão-pouco era amovível. Compensei essa falha de etiqueta masculina, ainda que não deliberada, auxiliando-a a remover o casaco e a dobrá-lo sobre o banco almofadado, assim como com o ajuste da mesa mais para perto de si, o que me faz recordar neste momento que ela é Pequenina. Talvez por isso me desse mais vontade de agarrá-la como a um ursinho de peluche para dar-lhe beijinhos e fazer-lhe carícias. Sou assim mesmo, um coração mole. "Diz que" não é defeito, é feitio. Nunca tive gosto em deambular pela maldade, falta de tacto, ausência de carinho, défice de ternura. Se esta Bonequinha é quem mais amo na minha vida, merece lá agora que entre num espírito aterrorizante, de ansiedade. Eu próprio não mereço, quanto mais passá-lo à pessoa mais importante da minha vida. Não conseguiria fazê-lo, sequer, ainda que tentasse. Daquele arco-íris que todos nós trazemos no nosso interior, apenas prefiro o negro para a minha forma de vestir. Acho que peças de roupa mais escuras ficam-me bem, mas não é nada de mais, porque esta é praticamente uma verdade absoluta, sendo que é aplicável à maioria das pessoas.
   Depois de analisarmos a carta deixada pelo mâitre, fiquei inclinado para a secção das pizzas. Poder-se-iam perguntar, "mas para quê comer pizza num restaurante tão fino quanto este, quando o que não falta para aí são restaurantes de comida rápida que servem exactamente o mesmo?". Pois bem, servem exactamente o mesmo, se nos orientarmos pela designação. Já a confecção dos pratos entre os referidos lugares mais comuns e esta casa nada tem a ver. Só o empratamento, modo de apresentação, etc. valem o que se paga pelos mesmos, e não fica muito mais caro do que numa cadeia ordinária (no sentido positivo de «habitual», não em tom pejorativo). Perguntei-lhe então o que é que gostaria de degustar.
   - Vejo aqui tanta coisa boa, não tenho bem a certeza do que vou querer... mas podes escolher tu, se não te importares. O que preferires está bom para mim.
   Chamei-lhe Tonta. Bem sabe que não é por mal, mas a intenção mais clara deste... digamos, «adjectivo» teve como seguimento a explicação que lhe dei, ou seja, que aquela noite era dela e que podia fazer como mais lhe apetecesse. Não é que se tratasse de uma noite excepcional no que a esse aspecto diz respeito, pois que todos os dias tinha liberdade de fazer o que bem entendesse, e não era eu que tinha de lha conceder. Já antes o disse, de novo o repito, pode ser a minha Bonequinha, mas não é minha «propriedade». Estamos a falar de uma pessoa, não de um objecto para usar por entretenimento e depois arrumar a um canto, numa prateleira mais alta, coberta de pó, ficando lá esquecido. E isto quando os objectos ainda são arrumados. Há quem não goste de sentir que ainda estão por perto e que podem cair a qualquer momento lá das alturas, quando uma pequena brisa, embalada pela corrente de ar vinda da janela aberta, os empurrar rumo ao chão, cujo estrondo assemelhar-se-á a uma pancada forte sobre a cabeça, relembrando a triste verdade. Mas então será já tarde demais. Já o objecto ter-se-á habituado a não ser desejado, e por isso não quererá voltar a ser usado, só para ir parar ao mesmo solitário local. É um ciclo para o qual ninguém está virado, de todo.
   Acabei então por sugerir o que o paladar me incitara a preferir, uma pizza com Prosciutto di Parma, Basil Pesto, Oven Roasted Tomatoes e Olives. Os últimos dois ingredientes poderiam ter sido citados com a devida tradução, mas alturas há em que momentos de snobismo não são fáceis de conter. Para beber, dois copos de Cabernet Sauvignon, tinto, doce, simplesmente maravilhoso. Agora já podíamos beber ambos, se se tratasse de há uns anos atrás é que ficaria por minha conta comprar a borbulhosa e agradável cevada, mas só para beber em casa. O passaporte não engana, "já dizia o outro". Havia cerveja ali servida também, claro, mas isso podia ficar guardado para outro dia qualquer. Aquilo sobre que conversámos naturalmente só a nós diz respeito, mas posso adiantar que abordámos Arte, na maioria do tempo, mesmo depois de chegar a pizza repousada num suporte sobre uma lamparina, para não arrefecer. Luxos destes não se encontram em todos os lados. No seio do contexto da Arte, Teatro. Era o assunto que mais nos interessava, não só académica, como profissionalmente. Falámos sobre nós, enquanto pessoas, enquanto amigos, enquanto secretos namorados. Secretos, justamente porque a atracção que se gerava entre ambos era evidente, só não via quem não queria.
   Depois de nos satisfazermos ambos, cada um com uma metade simetricamente repartida, tornei a chamar o mâitre para pedir a sobremesa. Disse-lhe que não valia a pena trazer a carta.
   - Come tu, se quiseres, eu já estou cheia, mas obrigada...
   Sorria. Era um sorriso algo envergonhado, devo confessar, mas genuíno, como sempre.
   Tendo aperfeiçoado a minha falta de jeito para trabalhos manuais, a sobre-mesa de surpresa vinha aí. Faltava-lhe a classe de vir colocada sobre uma bandeja, mas tenho perfeita noção de que já seria pedir muito ao pessoal da casa. Todo o complô tem limites, mas os que têm as melhores intenções. Era um embrulho majestoso, com laçarote incluído, no mesmo tom misterioso dos seus cabelos, consoante a intensidade da luz, já se sabe.
   - O que é isto, Ti...?
   Os olhos arregalavam-se-lhe em confusão e surpresa. Respondi, muito sucin-tamente, que era a sobremesa. Vinha era especialmente embalada e precisava de ser aberta. O que a Bonequinha encontraria no seu interior fá-la-ia ascender aos céus, só para trazer estrelas no lugar das íris.



Carta de Beethoven à Sua «Amada Imortal»

6 de Julho, de manhã.
Meu anjo, meu tudo, meu eu. - hoje apenas algumas palavras, e a lápis (com as tuas) - não poderei assegurar-me do meu alojamento aqui até amanhã - que desnecessária perda de tempo - porquê este sofrimento profundo, onde a necessidade toma a palavra - poderá o nosso amor existir senão por sacrifícios, sem que exija tudo.
Podes alterá-lo, não seres completamente minha, não ser completamente teu? Ó Deus, vislumbra a bela Natureza e acalma a tua mente sobre o que tem de ser - o amor exige tudo e totalmente em razão, é assim comigo contigo, e contigo comigo - só que esqueces-te muito facilmente, de que devo viver para mim e para ti também, se estivéssemos unidos inteiramente, não seria para ti tão doloroso, tal como não seria para mim - a minha viagem foi terrível. Não cheguei cá senão às quatro da manhã de ontem. Como havia poucos cavalos, o coche dos correios optou por outro caminho, mas como foi abominável! Fui avisado à última da hora para não viajar de noite; tentaram assustar-me por conta da floresta, mas isso apenas me deixou mais desejoso. - Estava enganado. O coche ficou preso na horrível estrada, uma sem pavimento apropriado, das rurais. Se ambos os cocheiros não tivessem estado comigo, teria ficado retido no caminho. Esterhazi tomou o caminho habitual para aqui e incorreu no mesmo fado com oito cavalos, o dobro dos que eu tinha. - Retirei no entanto algum prazer da situação, como sempre faço quando sou bem-sucedido a ultrapassar dificuldades. - agora rapidamente do interior para o exterior. Provavelmente ver-nos-emos em breve, só que, hoje não posso comunicar-te as observações que fiz ao longo destes poucos dias sobre a minha vida - Se os nossos corações estivessem sempre juntos, tais pensamentos não me ocorreriam. o meu coração está repleto de tanto que tenho a dizer-te - Oh! - Há momentos em que sinto que a língua nada vale - anima-te - permanece como a minha fiel mais-que-tudo, o meu todo, como eu para ti, o resto aos Deuses pertence, o que deve ser para nós e o que está guardado para nós. -
o teu fiel ludwig -
Tradução do Inglês
TiL

domingo, 27 de setembro de 2015

O Encontro (2015) | 3.ª Parte

   - Então, onde é que vamos?
   Respondi apenas que era surpresa, retorquindo posteriormente no remate se-guinte que, se era para proferir com todas as letras o nosso destino, então a surpresa não serviria de nada. Como seria quando chegasse o Natal e tivesse um embrulho em seu nome debaixo do pinheiro sintético? A criança que existe dentro de nós, porque esta nunca nos abandona, jamais, não vale a pena querer ser racional por completo, não é da nossa natureza, há-de sempre pressionar a curiosidade para que saiba de antemão que mistérios e segredos são esses que aqueles que nos amam têm para nós, entrando, se necessário for, em modo de chantagem, mas no bom sentido, com certeza, como seja ameaçar que não há mais beijinhos para ninguém se não dissermos. Mas a verdade é que, se soubermos esperar e se confiarmos no bom gosto do outro, que nos conhece melhor do que ninguém, essas ameaças caem por terra e muitas vezes acabam por se inverter em mais de cem por cento, querendo dizer que o recompensamos com muito mais do que beijinhos. É só permitir que o coração dialogue com a mente e o nosso agradecimento por ele ou ela ter pensado em nós e no nosso melhor será o mais criativo de todos.
   Adivinhando desde logo que da barreira dos meus dentes palavra alguma tres-passaria (subtileza trágica), não mais tornou a insistir. Nem me ameaçou de modo nenhum. Sempre que procurava fazê-lo, acabava a rir-se, olhando-me as íris em busca de algo que lhe desse a entender que eu acreditava, mas a minha resposta era sempre a mesma, tanto que já a citava de cor, como qualquer actriz profissional:
   - Já sei, já sei... andas nisto há muito tempo!
   Se era verdade, para quê negá-lo? Não é que o não fizesse de vez em quando, mas era só para fazer género e vê-la rir-se da minha expressão patética de falsa soberba.
   Por conta dos nervos e do cansaço, os seus olhinhos, no sentido de serem doces, porque em tamanho eram grandes, belíssimos e luzidios, iam-se fechando. Questionei-a, então, procurando saber se tinha sono e se preferia antes ir para casa descansar um pouco. Este é o sentido mais literário da minha pergunta, porque, e em verdade vos digo, sem traições, os termos com que a coloquei foram muito mais pueris, ou seja, se queria "fazer óó". Não me julguem, é ela que me derrete assim, como chocolate num dia quente de Verão. Atirem a primeira pedra ao charco, se nunca antes o enunciaram desta forma.
   - Não, Ti, só estou muito cansada, mas feliz por estares aqui, mesmo muito.
   E encostou-se ao meu ombro, repousando sobre este a sua cabeça. Muitas vezes era apenas capaz de pensar que os seus cabelos só podiam ser mágicos, não só pelo tom variável que assumiam consoante a luminosidade, algo que lhe gabava frequentemente, mas pelo olor perfumado que lhes era tão natural. A minha lisonja constante, relativa aos seus atributos enquanto mulher, pode parecer por vezes cansativa ao olhar, mas não é por mal que o faço, pelo contrário. É porque é a mais pura das verdades, e mal nenhum não existe em dizer à nossa cara-metade o quanto lhe queremos. Enquanto isto, entrelaçou também os dedos da mão direita com os da minha mão esquerda, e deixou-se estar, só com a firmeza necessária para se sentir segura, certa de que jamais permitiria que algum mal lhe acontecesse.
   Os motoristas da Uber são bem mais simpáticos do que os regulares taxistas, e portanto não é de estranhar que eles mesmos iniciem conversa com os passageiros. Percebi pelo retrovisor central, no qual vi o seu olhar reflectido, que era uma pessoa simpática e jovial. Embora não tivesse sido capaz de perceber o conteúdo da minha conversa com a minha Bonequinha, há termos linguísticos, e não necessariamente contidos na fala, que são universais, independentemente da zona do globo. Por isso deixou-se ficar em silêncio, deixando apenas transparecer um sorriso, quase como que cúmplice.
   O trânsito estava ligeiramente caótico. Mesmo circulando em avenidas tão lar-gas quanto aquelas, o espaço não é suficiente para milhões de carros que sobre as mesmas podem rolar em apenas poucas horas. Enquanto passávamos entre o observatório e o famoso letreiro, numa das principais artérias, fui olhando o exterior. Quase que não havia zonas escurecidas, a iluminação proveniente de várias fontes eléctricas não o permitia. Desde a minha primeira visita à cidade, na companhia da minha melhor amiga, cidadã nacional, embora não sendo originária deste estado, que me apaixonara totalmente. Podem até dizer que é snobismo ranhoso, mas a impressão que tenho vindo a construir cada vez mais no meu pensamento é a de que a Europa está a tornar-se demasiado empertigada, e não só com pessoas oriundas de outros continentes, mas também com os próprios europeus. Afinal, de civilizados os habitantes nascidos neste continente têm muito, mas a maior falha acontece no sentido cívico. Não temos o direito de negar asilo a refugiados, se alimentámos a guerra que provocou a sua partida, muito menos com o nosso histórico. Os europeus, enquanto berço civilizacional do Ocidente, não se escusaram de eliminar pelo menos três civilizações americanas, entre outras tribos menores, cuja execução ficou a cargo dos britânicos, a Norte. É claro que Astecas, Maias e Incas, distribuídos pelo Centro e Sul do Novo Mundo, apenas atingiram o estatuto imperial por sacrifício de tribos isoladas, pelo que matar para conquistar não é nada de novo, de todo. Chega a ser pré-histórico, inclusivamente.
   Então porquê apaixonar-me por uma Menina europeia como eu, e não de outro continente? Não são os traços ancestrais, demográficos, étnicos, geográficos, políticos ou religiosos que definem uma pessoa. Funcionam em modo de contributo, sim, mas a pureza contida no coração não é tão superficialmente moldável. É uma impressão que só a natureza pode deixar marcada e inscrita na mais profunda cavidade de cada um. E foi isso principalmente que emitiu o sinal necessário. Não precisámos de conversar extensivamente para incorporar a sua personalidade. Não é ocasional que, quando alguém nos elogia, sintamos que estão a pintar um quadro demasiado bonito, com recurso ao nosso arco-íris interior como fonte de tinta, crendo que não somos tão coloridos quanto isso para desenharem um Sol bem brilhante e sorridente num dos cantos superiores, junto à aresta da moldura, mas não é essa falta de confiança que vai ditar a percepção que temos da personalidade dos outros. Não, ninguém é perfeito, todos temos defeitos. É isso que nos dá vida, que alimenta uma relação. Alguém com aspectos contrários aos nossos é quem falta para completar-nos, nós que vivemos com uma metade só e estamos condenados a procurar o ente querido, separado de nós originalmente pelo poder de Zeus, mas também pelo medo, não fossem os humanos virar-se contra ele e restantes olímpicos para tomarem o lugar que é seu por direito. O negro também é uma cor, mas os defeitos que nos são característicos não passam necessariamente pelas trevas. Pode nem se tratar sequer de um cinzento carregado, mas talvez de um tom mais esbatido. E sempre que um de nós se sinta azul, o outro estará lá para complementar a paleta.
   Estando o caminho um pouco mais livre, vamos avançando, até que chegamos enfim ao destino. O motorista desliza o indicador no seu telefone, concluindo o percurso e cessando a cobrança pela viagem. Bastante sensível, aguarda que acorde a minha Bonequinha, ao invés de escorraçar-nos dali para fora. Levanto com carinho e gentileza o seu queixo e encosto a minha fronte à sua. Chamo-a pelo diminutivo e digo-lhe que chegámos. Abandonamos o veículo e os seus olhinhos prendem-se à magia daquele lugar. Puxa-me do braço para alcançar uma das minhas maçãs-do-rosto e aí deposita um beijo profundo, onde tenho a certeza de que o batom terá ficado marcado. É quase como se o cansaço lhe tivesse passado de súbito. Há vida em si uma vez mais.

sábado, 26 de setembro de 2015

O Encontro (2015) | 2.ª Parte

   Ainda não comprei um carro. Confesso que seria muito mais agradável fazer a viagem a nível particular, mas trazer o meu primeiro a partir de outro continente era absolutamente inexequível e, por agora, devo amealhar o mais que puder. Não é que o orçamento me chegue à risca, mas apenas eu recebo salário e não quero endividar-me para já. Não posso transformar-me num fardo público para o Estado, é o que a Lei diz, para além de que o meu visto não é ainda de residência permanente. Mas já falta pouco para alcançá-lo. De qualquer das formas, é óbvio que já tratei de pedir equivalência à minha carta de condução original. Nem que fosse apenas para fazer género, e a questão é essa, no fundo, mas restrita apenas ao entretanto. Depois, logo se verá.
   Existem outras alternativas, agora que penso nisso. Posso alugar uma viatura. Aqui, praticamente ninguém conduz com transmissão manual. É neste momento que me recordo de um expatriado que, nos tempos de juventude, percorreu toda a Europa e acabou por escolher a minha terra-natal como local definitivo onde ficar. Dizia ele, na sua língua e bastantes vezes: "I'm lazy...". Pois sim, sou capaz de entender a sensação. Seria um estereótipo dizer que todos os habitantes desta zona do globo são exactamente iguais em iniciativa, mas não é de todo o caso. Conheço pessoalmente quem tenha até demasiado ímpeto, quase que irrefreável, mas numa altura em que mecenas algum está disposto a oferecer a mão, senão a troco dos devidos interesses, claro está, não existe qualquer maneira de suplantar as dificuldades que habitualmente se afiguram a gente dotada com os apropriados valores éticos e morais. Por isso vou prestando eu mesmo algum auxílio, dentro das minhas possibilidades. Para além disso, como referi supra, tenho de governar não só a mim, mas também a minha Menina. Trabalha, mas não pode receber salário se estiver a estudar em simultâneo. A Secretaria de Estado da Administração Interna, que tutela os Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, disponibiliza imensas categorias de vistos, mas cada qual reflecte as suas burocráticas limitações. Obter um visto de estudante acaba por ser um negócio justo para quem pode ter uma vida num país diferente sem possibilidade de remuneração. Paga primeiro ao Estado, recebe depois, mas não necessariamente a partir de dinheiros públicos; tudo depende da entidade patronal, inclusivamente a justiça do trato, se será digna de assim ser designada, com base no equilíbrio entre o que se pagou no passado e o que se vence no presente.
   Mas posso também chamar um Uber pelo telefone. É mais prático. Não o faço porque esteja à procura de problemas ou com vontade de participar numa cena real de pancadaria com taxistas mal-educados e de péssimo humor. É um facto, parece que mesmo noutro ponto qualquer do globo, a imagem de marca mantém-se. No Reino Unido, por exemplo e pelo contrário, nunca apanhei taxistas mal-humorados. Não é de admirar. Eu, que levo a carteira talvez um pouco mais abastecida do que o costume, só por conta das necessidades mais imediatas que não aceitem cartão ou autocarros de dois andares que me peçam um Oyster card carregado, certamente esvaziá-la-ei para atestar a dos motoristas. Primeiro, porque assim que vislumbro as estradas a partir da janela da cabine da aeronave, vejo faróis e retrorreflectores vermelhos na faixa de rodagem do lado esquerdo, enquanto os bi-xénon amarelos e brancos iluminam o lado direito, fico logo confundido. Não fosse estar escrito no chão o lado para onde devo olhar junto à passadeira, provavelmente trocar-me-ia por completo, acabando atrás da viatura num único salto. Depois, até alcançar o hotel, já bastante de noite e em caso de greve inesperada, com certeza, estando Heathrow na extremidade da cidade, o caminho é longo e é tão fácil enganar o pobre coitado do turista com recurso a "atalhos" que não encurtam, mas, muito ao revés, só aumentam ainda mais a relação espaciotemporal que existe entre uma viagem cansativa, ainda que curta, mas voar é assim mesmo, e cama feita de lavado onde repousarei o meu inerte cabedal. Mas parece que, quanto mais cansado, menos durmo. As crianças não têm problema nenhum; depois de andarem a correr de um lado para o outro durante o dia, especialmente em copos d'água ou festas de baptizado, dormirem doze horas seguidas revela-se apenas como mais uma fatia de bolo de chocolate. Agora eu, que escrevo e puxo pelos miolos, talvez derramados no interior do meu crânio, uma imagem inspirada n'A Celestina, atribuída ao raciocínio cáustico de Fernando de Rojas, activo durante duas semanas (não sou particular crente dessa declaração, uma vez que eu próprio idealizei um livro em cinco dias, mas o registo pareceu-me ser demasiado maníaco e não avancei para a publicação), que queria poder conseguir dormir uma noite seguida, sinto que o meu subconsciente é invadido por aquilo a que chamam As Intermitências da Morte (mais uma piada literária).
   Definitivamente, talvez seja melhor chamar um Uber. É mais rápido. Talvez não mais barato, mas não faz mal. Não olho a meios para alcançar os fins. Esta frase tem o condão de habitualmente ser empregada em contextos linguísticos particularmente duvidosos, mas se me é permitida a explicação, neste caso específico, não olho a meios, que é como quem diz dinheiro, para alcançar os fins, que são muito concretamente fazê-la sorrir, sentir-se feliz e, em especial, amada. Não é de todo necessário investir economias para agradar a uma mulher. Verdade, concordo em absoluto, mas prefiro confiar nos dotes culinários de profissionais do que nos meus para que a minha Menina possa sentir-se satisfeita de estômago. Além disso, não tenho também um quintal ou um terraço particulares. Conto vir a tê-los num futuro de médio-prazo, quiçá, mas por enquanto estou limitado nesse sentido. Significa isto que não possuo um roseiral. Logo, tenho de ir à florería mais próxima e pedir que lá me façam um botão para a lapela do casaco, talvez com recurso a um pequeno alfinete, para que a rosa vermelho-sangue, do mesmo tom do batom que repousa sobre e se une aos seus apaixonantes lábios num brilho natural, já se sabe, não deambule no interior do bolso e rompa as suas formosas pétalas. Faço sempre questão de escolher uma das rosas mais vivas e florescidas. Flor por flor não me agrada. Se vou oferecer alguma coisa, então que seja nas devidas condições. Menos do que isso, e é uma ofensa. Talvez não para ela, que tem um coração doce e apreciará decerto o gesto, mas para mim, que não a enalteci como senti que deveria ter feito.
   Enquanto aguardo junto à entrada para o Bowl (o espectáculo vai ser ao livre!, como no anfiteatro da internacionalmente reconhecida Fundação para lá do Atlântico...), vou entrando na aplicação, já de crédito confirmado, e procuro condutores disponíveis na zona. Há sempre alguém livre para cobrar entre dez e vinte unidades monetárias extra no final de cada semana. Ainda para mais, hoje é sexta-feira, é conveniente. Eis que de súbito, depois de convocar o motorista, ouço a pureza da sua voz percorrer-me o ombro e chegar ao meu ouvido:
   - Ti!
   Algo na minha mente dispara, depois de instantaneamente assimilar aquele chamamento, e logo pela minha sílaba favorita. O coração acelera, sinto-o reverberar no interior da caixa torácica. É um facto facilmente explicável. Estar apaixonado e amar a sério compreende sempre entusiasmo por partilharmos o lado íntimo da nossa vida com quem o mesmo coração escolheu. Não é assim tão atractivo, pelo menos no que me diz respeito, não olhar a obstáculos para conquistar a donzela e depois deixar-se encostar ao garantido. Isto porque, surpresa, cortar o oxigénio à chama provocará a sua extinção. Portanto, não, não é garantido que uma relação dure se pelo menos uma das partes não se preocupe em mantê-la. Eu não me preocupo, preocupar-te-ás tu por que carga de água? É muito triste, mas acontece.
   Por isto mesmo, eu, em me virando de frente, não dou conta de que o queixo me descaía. Secam-se-me os lábios, humedeço-os com a ponta da língua irreflectidamente. Ela está... como é que se descrevem visões que não fomos ensinados a aguardar no contexto da vida real, senão apenas em sonhos e histórias fantásticas? Por sua vez, já sabe quais são os meus nomes carinhosos mais comuns, mas não é por repeti-los ocasionalmente que se cansa ou os considera chatos. É simplesmente o meu jeito de me dirigir a si com ternura. Direi apenas, para que reste a ideia, que era a minha Bonequinha. E isso terá de ser suficiente para agradar quem por aqui vagueia, independentemente de ter um propósito ou caminhar errante, pela errância errando.
   Pergunto-lhe como correu o ensaio:
   - Não estive muito segura no monólogo...
   Teria sido alguma branca? Com tanta coisa em que tem de pensar simultaneamente...
   - Não, foi o tom... senti que deixei cair um pouco a cena, e ainda ontem tinha saído tão bem...
   Assegurei-a, é claro, de que não havia problema. Os ensaios-gerais para isso mesmo serviam. Errar hoje, rebentar com tudo amanhã. Seria pior se se tratasse de um exercício de três dias. Nervos na estreia, mas rebentamento conferido; moleza no segundo dia, uma superstição já cansada de ser comprovada; saudosismo na última noite, com as despedidas e a cessação da energia construída durante meses, apenas para ser demonstrada num total de quatro horas e meia, isto multiplicando. É assim mesmo a nossa vida.
   O motorista estava a aproximar-se. Reconfortei-a uma vez mais, coloquei-lhe um beijo carregado sobre os cabelos perfumados, e abri-lhe a porta do carro.
   - Não vamos para casa de transportes, hoje?
   A minha resposta foi, quase num sussurro, que não iríamos para casa.


O Encontro (2015) | 1.ª Parte

   Esta noite há ensaio-geral, e está marcado para as dezanove horas. Onde vivemos em tempos, a prática comum para espectáculos em cena era marcar o seu início entre as vinte e uma horas e as vinte e uma horas e trinta minutos. Nem mesmo em pleno Inverno, quando o céu entra em depressão, chorando os seus incontáveis milhares de milhões de lágrimas, enregeladamente suspirando sobre o ocasional transeunte ou mesmo ambos, num cenário de indubitável e completa desgraça, ao qual o madrugador crepúsculo vespertino vem adicionar tons tenebrosos, as horas destinadas à actividade cultural são trocadas por outras mais confortáveis a alguém que teve um dia trabalhoso e que gostaria de experienciar um momento recreativo por sua alta recreação, embora desejando mais tarde, depois de abandonar a sala, eventualmente tomar um chá de eucalipto para se aquecer e entregar-se a um bom romance, entrelaçado no cobertor, sobre o sofá, junto à lareira, se de uma dispuser. Não. Efectivamente, quando o espectáculo terminar, subtraindo o tempo que se demora a chegar a casa através de transportes públicos, táxis incluídos, será impossível relaxar e atrair a vinda do sono, senão mesmo aquecer primeiro, e só depois mergulhar debaixo dos lençóis para, ó triste fado, ter de acordar abaixo dos limites de repouso recomendados para um adulto. Somos demasiado jovens para acordarmos com cinco ou seis horas de descanso e começarmos a encovar os olhos nas suas órbitas. A um jovem adulto, como eu e segundo a opinião de algumas amigas, até que é charmoso para um homem carregar uma ruga de expressão ou duas, independentemente da tenra idade. Significa que sabemos sorrir, e não é só com os lábios, pois que sorrisos desses não são verdadeiros, se não convencerem os olhos a sorrir consigo também. Do cabelo grisalho, nem se fala, mesmo que seja um pequeno fio, oculto entre o negrume das têmporas, brilhando apenas consoante a luminosidade solar de cada dia.
   Mas a nossa rotina já não é esta. Deixámos de ir ao Teatro na capital e já não são estas as horas a que o frequentamos, no seio de toda aquela gente que conhecemos, e, na sua maioria, até bem demais, absolutamente tóxica e enodoante para o bom nome que a nossa arte um dia carregou, ou pelo menos assim gosto de pensar que aconteceu, uma época em que não tenhamos sido colocados à margem por querermos dar corpo e voz à arte, uma vida, enfim, permanecendo na pureza dos nossos corações, tal como começaram a bater depois de formados no ventre, impermeáveis à corrupção e ao vício, em especial de nos envenenarmos mutuamente, uns contra os outros, numa tentativa pútrida de nos aniquilarmos enquanto mensageiros da paz pela cultura de uma sociedade, apenas para nos marginalizarmos cada vez mais, por nós próprios, e perdermos o mérito que nos seria normalmente devido e, como bónus, reconhecido.
   Agora habitamos um outro estado, somos alienígenas legais, com vista para o Pacífico e um cais que penetra o horizonte, quase como se fosse decididamente capaz de nos levar àquele aparentemente intocável ponto onde o mar beija o céu. Não é que uma cara-metade tenha de mudar pela outra; se nos amamos, é tal como somos. Não tenho o direito de querer construir ninguém à minha imagem, não sou narcisista. Para isso, ver-me-ia ao espelho, e mesmo assim é só quando o asseio o exige, não por admiração própria.
   São quase vinte horas e trinta minutos. O ensaio há-de estar a chegar ao fim. Vou levá-la a jantar na Baixa, mas ainda não sabe. É surpresa. Xiu...!

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

É Meia-Noite

Mas não tenho hora marcada para amar-te.
Vem encontrar-me junto ao cais.
Estarei a aguardar pelo teu suspiro cerca das ondas.
Vem voar comigo.
O mundo é nosso.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Saudade

   Não há como negá-lo. Logo que acordo, é em ti que penso. É sublime declarar com recurso a palavras belas que nada mais há neste mundo que me tome de assalto assim que desperto, e a verdade é que, através de meios que não sou capaz de compreender, talvez por serem inexplicáveis logo à partida, é realmente a verdade que tenho em mim que me provoca sem conseguir evitar, ainda que o quisesse, a passar a noite contigo num registo ilógico.
   Posso ter a certeza de muita coisa habitualmente, mas a razão não é resposta para tudo, e a inteligência nem sempre pode guiar-se pela academia. Eu próprio tenho ligações académicas e, ainda assim, não gosto de academia. A designação ilustra toda a situação: são transmitidas noções como se de verdades absolutas se tratassem. Nem mesmo as ciências exactas como a Matemática compreendem uma única maneira de resolver problemas (daqueles de escola, que praticamente nunca acontecem na vida útil), quanto mais o Teatro, que progressivamente vai adoecendo através de constantes inovações apenas espectaculares à elite da elite, não de quem deambula na crosta terrestre, junto do abismo oceânico, mas sim de quem vagueia já no manto, em estado líquido, efervescente, sem qualquer consistência que permita a sua solidificação, de tão visualmente insuportável que se torna, desde que alguém se lembrou de misturar artes plásticas com arte teatral e obliterou a dramaturgia.
   Na era em que vivemos, ninguém desliga o telefone, não existe incontactabi-lidade. É a única maneira que tenho de te ver, mas não há nenhuma que me permita escutar-te, muito menos tocar-te. A realidade virtual entorpece-me os sentidos, confunde-me, vai fazendo de mim Morfeu; quero dizer que me vai consubstanciando com a tua imagem. É estática, mas tão perfeita... bem sei que perfeição é um ideal com que a Humanidade tem vindo a sonhar desde que se conhece, especialmente desde que se revolucionou industrialmente, construindo seres biónicos para colmatar as nossas falhas, senão mesmo incorporando peças electrónicas nos nossos biológicos corpos, aumentando a nossa sensação de sucesso. Mas de que dispositivos é que eu necessito, no fundo? Vislumbrar-te no telefone é apenas acessório, mas dou por mim na insanidade de quase tocar o ecrã, onde vejo o retrato do carinho que se espelha pelo teu rosto.
   A tua imagem ajuda-me a suprir ligeiramente a saudade que sinto arder em mim, saudade de ouvir a tua doce voz, saudade de ver o sorriso dos teus olhos meigos em consonância com o dos teus lábios delicados, saudade de espectar as pontas dos teus cabelos em caracóis ao sabor da dança do vento, saudade, enfim, da tua quintessência.

Viver

   Ainda há pouco tempo, uma coisa de uns dias, estava a sonhar acordado. Peço-te, não te deixes incomodar por me ouvires falar frequentemente em sonhos. Sonhar é simplesmente uma forma de atear o combustível que nos percorre as veias rumo à realização do que sempre nos pareceu impossível e, no entanto, é tão facilmente concretizável. Basta querermos, não é segredo algum.
   Qualquer lugar dentro do País me serve para poder estar contigo. É só dizeres-me que queres ver-me, enlaçares a tua mão na minha e sou feliz. Ninguém poderia jamais dizer-me o contrário. Lembras-te de ter criticado de volta quem critica os apaixonados, aqueles que dizem que há namorados que são demasiado infantis por acreditarem em contos de fadas? Pois bem, tal como isso nunca me incomodou antes, agora muito menos. Sabes que... teres surgido, assim tão inesperadamente, foi como ter renascido? Não só para mim próprio, porque creio que é importante renascermos para nós mesmos depois de experiências de vida pelas quais sacrificámos a nossa precisa existência, mas também para o mundo e, muito em especial, para ti. Vejo-me mais forte, mais crescido, mais disponível para enfrentar situações que têm um gosto doentio em assemelhar-se a obstáculos ao meu percurso habitual, desafiando-me a contorná-los para lá dos limites da zona de conforto. Não é porque tenho vinte cinco anos que teria de ser adulto por completo. Pessoas mais velhas do que eu há que deveriam marcar o exemplo, mas na verdade... ao meu equilíbrio de razão e emoção o devo.
   Fazes-me falta. Não é estar apaixonado que me faltava. Paixões e, mais habitualmente, paixonetas, toda a gente tem em algum momento da sua vida e, com a devida maturidade, sabe que não é coisa para durar. Ter-me enamorado de ti e só de ti, isso sim, é o que não estava presente em mim e me não completava. Tendo-te toda em mim, serei uno enfim. Não é que a minha vida não corra, actualmente. Corre. Mas também gosto de caminhar, caminhar pela beira do rio num passeio de domingo à tarde, e é contigo que quero fazê-lo.
   Mas aquilo que queria mesmo retirar do onírico e tornar realidade era simplesmente fazer uma escapadinha, sem nada nem ninguém, só nós. Apanham-se voos hoje em dia pela mesma pechincha que um bilhete de comboio para o Porto, ou até mais barato, mais do que levar o meu próprio carro ou aguardar pela tua chegada ao terminal das carreiras intercitadinas. Quero raptar-te de manhã e voltar só à noite, porventura não te deixando sozinha mesmo depois desse dia juntos, ou levar-te ao princípio da tarde e regressar apenas no dia seguinte.
   Levo-te a tomar o pequeno-almoço em Londres, a almoçar em Paris, a jantar em Roma e a navegar de gôndola em Veneza, ou simplesmente outro lugar qualquer que queiras visitar, desde que me prometas que fá-lo-ás comigo, para que possamos unir-nos nesse desejo de conquistarmos o mundo sem preocupações, reconfortando-nos mutuamente no calor um do outro, ainda que os céus se fechem e as suas lágrimas nos abençoem.
   No final de um sonho, outro se seguirá.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Carta

Meu Amor,

   Tenho os meus sonetos guardados para ti, mas hoje não me apeteceu transcrever nenhum deles do caderno de apontamentos. Preguiça não é, falta de criatividade tão-pouco. Felizmente, imaginação é algo que nunca me faltou, e sei que poderei contar sempre com ela.
   A Poesia, para mim, é algo simplesmente de ulterior e supremo. Creio que é o melhor género literário a partir do qual consigo expressar de uma forma tão mais bela o que o meu coração não é capaz de manter calado.
   Esta noite, esperando voltar a ver-te, não só em sonhos, mas diante de mim, a uma carícia de distância, enquanto me perco nas tuas íris de avelã, sinto que devo bradar aos céus. Bem sei que é de uma loucura a roçar o cliché cinematográfico querer voar até à Lua e voltar quase como que instantaneamente. Mas é como se o seu brilho lunar, de pérola, como não há muito assim falei sobre ela, me chamasse das suas obscuras profundezas, como estando perdida no mar, resguardada pela concha de uma ostra, à espera de ser encontrada. Como se o canto da sereia ecoasse a um ritmo cada vez mais compassado e audível, à medida que a ondulação mergulha de cabeça sobre os grãos de areia túmidos de sal, querendo libertar-se da prisão solitária do oceano, embora não conseguindo à primeira tentativa. Tem por isso de recuperar a força arrastando os seus aquáticos membros pelo agora mais suavizado areal, de regresso ao seu todo, ao seu inteiro corpo, para poder atirar-se em rebentamento e oferecer uma parte de si à praia que procura beijar desde a eternidade.
   Eu sinto-me preso, também. Não pensei no devido valor desta analogia, mas não quero, de qualquer forma, complicar este «problema de expressão» com palavras apetrechadas de asas. Deixá-lo-ei para quando escrever outro épico, se tal tiver de acontecer.
   Quero alcançar o teu rosto, tornear o teu corpo num abraço e guardar-te apenas e só para mim. A minha rotina continua, assim como prossegue no bom sentido, pois que adormeço contigo no pensamento, sonho contigo na minha imaginação, cuja chama viva é ateada pela força do meu compassado instrumento de corda, desrespeitando o metrónomo quando a mente lhe diz que o beijo de amor está prestes a consumar-se, apenas para ser interrompido pelo despertar, aguardando o final daquela cena téspia, embora não encenada, mas tão real quanto conseguirmos torná-la.
   Nada nos impede, é o desejo de dois corações desenhados pela Natureza para se associarem um ao outro em perfeita harmonia.

   Amo-te.
   Sonha com o arco-íris.

Ti

terça-feira, 22 de setembro de 2015

"Christine, é Tudo o Que te Peço"

Christine, em segredo Eric te observa
Por detrás da máscara branco-puro,
No sub-palco perdido de Minerva,
Seu encanto se não vê no funduro.

A tua mão, enlaça-a c'oa minha,
Peço-te, sou eu, Raoul, que em trovando
Para ti sigo, Princesa, Rainha.
Em dando as mãos, meu 'sprito vai voando.

Cantigas d'amigo, assim lhe chamam.
Pois põe-te na do Teatro a janela,
Tenho ânsias de acariciar o teu rosto...

São desejos, ensejos que me inflamam
Ardentes e mais quentes que uma vela,
'Inda que não sequem lábios de mosto.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Borboletas

   A minha rotina nocturna está progressivamente a transformar-se nisso mesmo, em algo programado, mas não necessariamente no mau sentido, muito pelo contrário. Na noite passada, à semelhança de já muitas outras ao longo do Verão, iniciei o meu percurso pelo vale dos sonhos a pensar nela. Mais do que um pensamento abstracto, vi-a muito concretamente a tomar conta da minha imaginação. É uma mulher única, sem sombra de dúvida, mas de cada vez que me insufla o coração com o seu amor, a minha mente rejuvenesce uma e outra vez, como se a observasse repetidamente pela primeira vez, ao mesmo tempo em que me reapaixono pela mais bela entre outras mulheres que terei visto, talvez semelhantes, mas jamais iguais.
   Sonhei com ela. Há quem tenha a capacidade de, mesmo no seio do subconsciente, controlar o domínio do onírico, ou assim o clamam. Já eu, que não tenho controlo algum, consegui incluí-la no meu sonho. Não tenho noção de quanto tempo terá durado ao longo das minhas horas de sono, mas fico sempre com aquela sensação de que existe um enorme desfasamento entre as vinte e quatro horas a que estamos habituados no contexto da realidade e o tempo que, muito simplesmente, quisermos que os sonhos tenham.
   Os seus cabelos, dos quais logrei sentir o perfume, variavam com a iluminação que sobre si recaía, ora um pouco mais dourados, em caracóis, reflectindo o brilho do Sol, talvez vaidoso consigo próprio, ora um pouco mais morenos sob o luar, prosseguindo a sua metamorfose na altura do crepúsculo, roçando o ruivo, em tons de fogo vivaz. Fez-me recordar a Fada Oriana, uma daquelas leituras já tão nos confins da memória, mas que, ainda assim, permanece tão actual e tão apropriada à situação do presente.
   Os seus olhos miravam-me como que penetrantes, procurando ler os imensos segredos que o meu coração ia revelando, um a um, pelo veículo de transmissão mais fiável da verdade, justo o meu olhar. A minha linguagem corporal certamente far-me-ia parecer um daqueles actores que interpretam personagens através do recurso de estilo da personificação. No caso, creio ter-me assemelhado a uma vara verde, embora, agora que reflicto sobre isso, queira ver-me como tendo parecido uma cana-de-açúcar, planando ao sabor do vento, como se imensas borboletas em simultâneo me abanassem e me deixassem nervoso, temendo dizer algum disparate ou fazer um gesto menos pensado, mas, em todo o caso, transbordando de doçura por aquela mulher que tinha na frente.
   Ela é adulta, sim, mas carinhosamente, com todo o respeito que tenho por si, naturalmente, é Menina. Vejo-a Menina. Não se trata de uma questão relativa a quem já viveu mais ou menos, idades são apenas números. Vejo-a Menina porque tenho-a como a minha bonequinha... a quem quero abraçar, segurar no meu regaço e cantar canções de embalar enquanto nos sentamos na areia da praia deserta, já fresca da brisa marítima e brilhante por acção da cúpula celeste que nos resguarda lá do alto, onde as estrelas enfeitam o azul-noite do céu, junto do astro maior, a despida Lua branco-pérola.
   Enquanto canto, sussurradamente, porque ninguém está por perto e o único som audível é o quebrar das ondas da praia-mar sobre o horizonte que, ao contrário do outro, pode ser alcançado com o banhar dos pés descalços, os seus lábios carnudos e luminosos do batom vermelho-sangue permanecem num sorriso. É nessa altura que chego a um complexo dilema, tendo de decidir se perpetuo o canto ou se, sorrateiramente, o interrompo num beijo profundo em que nos perderemos ambos, sendo que, por meu turno, estarei a sorver o licor inebriante da sua língua, como que me renovando a energia necessária para continuar a cantar, embora esteja, por esta altura, cativo da sua boca, e queira apenas deixar-me ficar como residente permanente do seu coração, sem retornar à contagem do tempo das habituais e aborrecidas vinte e quatro horas de cada dia.
   Dou pelos dedos de uma mão a ostentar a sua cabeça, entrelaçando-se por entre os aromáticos cabelos, enquanto os dedos da outra acariciam suavemente a sua pele sedosa, percorrendo com as pontas, uma das zonas mais sensíveis dos nossos corpos, o seu esculpido pescoço, por onde sei que os meus lábios vaguearão, não sendo capazes de resistir, nem tão-pouco querendo, ao beijo que deixarei aí repousado, uma vez, duas vezes, tantas quantas me for possível.
   Todo o corpo da minha bonequinha está ao meu alcance, e enquanto lhe beijo o torneado pescoço, os dedos da mão que aí estivera há uns minutos seguem para a sua barriguinha. Agora não só as pontas dos dedos deslizam sobre o seu vestido, mas toda a constituição da minha mão, até ao ponto de viragem em que ostentará as suas costas, tornando-a, toda ela, cada vez mais minha. Não minha «propriedade», não unicamente minha e de mais ninguém, pois que não sou egoísta e sei que devo partilhá-la, mas... amada, só minha. Bonequinha, só minha. Musa, só minha. Namorada, apenas e só minha.
   É então que descubro que devo fazer o pedido. Alguns poderão dizer que rótulos não são mais do que isso, mas já não tenho apetência para me importar com o que alguns ou muitos poderão pensar sobre a minha vida. Quero-a, queremo-nos. Assim, embebido na sua essência, desprendo os meus lábios dos seus, a custo, e reabro os olhos, emparelhando-os com os seus. De novo a sua boca se torneia num sorriso tão puro e genuíno. Reúno forças, coragem, e pergunto, focado nas suas íris:
   ― Posso ser o teu Namorado?
   De súbito, os seus olhos alcançam um brilho ainda maior, humedecem-se, e os seus lábios abrem-se num rasgado sorriso, revelando os seus sempre tímidos dentinhos.
   Acordo. Ainda é de madrugada. Estou deitado na minha cama, a sós, tal como quando adormecera, mas o sonho continua tão vívido como até há instantes. De novo cerro os olhos e procuro entregar-me uma vez mais ao sono, na esperança de rever a minha bonequinha tal como ela estava naquela imaginada noite, recordando o momento do seu largo sorriso, só para ouvir a sua doce voz pronunciar a mais desejada resposta à pergunta que ficara a pairar no firmamento.

Mas é do Teatro a Musa a Levar-me o Siso...

Brincar com a Música na palavra
Ou inverter e fazer um quiasmo
Que me faz continuar e me não trava...
Meu Amor, domina-me o entusiasmo,

Deveras! Olha, dás... dás-me um abraço
Se te cantar baladas com carinho?
Posso fazer de berço o meu regaço
Enquanto canto a «Canção do Beijinho»...

O Carlos Paião que há em mim aflora-se
Nas alturas de sensibilidade,
Quando me mostras tímido sorriso.

Artista que não se conhece adora-se,
Mulher comum tem fisicalidade,
Mas é do Teatro a Musa a levar-me o siso...

domingo, 20 de setembro de 2015

«Sinfonia Eroica»

Ó amigos, peço-vos, estes tons
Não... rogai pois à dos Elísios a filha,
São perpetuamente belos seus dons
Na sinfonia heróica da Bastilha!

Assim segue Napoleão Bonaparte
Na Revolução, cavaleiro andante
Que inspirou em van Beethoven a Arte
Do séc'lo dezoito o primeiro quadrante.

Amor, sob a Lua te vejo nua,
É efeito da pérola da noite
Que não brilha mais que os teus diamantes

No escuro céu, que fará capicua
Para que sob as estrelas pernoite
Em ti, ao som da sonata penetrante.

sábado, 19 de setembro de 2015

Cadernos Virtuais: Um Amigo em Horas de Ansiedade?

   Expor os sentimentos que apenas nós somos capazes de experienciar, porque são intransmissíveis, por mais que queiramos fazer deles algo de viral, numa qualquer plataforma online que, no fundo, assume a função de diário, embora não necessariamente lacrado, mas sim visível aos olhos da Rede, conforme as regras de privacidade de cada um, não é nada de novo. Aliás, repare-se, este blog, apenas por si, contará já dez anos de história no próximo dia 24 de Dezembro de 2015. Efectivamente, há uma década atrás, nem eu, nem o meu co-autor parecíamos ter nada mais para fazer em plena Consoada, mas decidimos de qualquer forma entrar na onda dos weblogs, que atingiram o auge da sua popularidade de modo redundantemente exponencial nessa mesma altura. Já nos dois anos anteriores, numa época em que o mundo estava ainda a passar por uma radical transformação que não veria a respectiva conclusão tão cedo, aventurara-me, em conjunto com outro colega e amigo, em dois blogs anuais mais reduzidos em interesse, mas igualmente activos na publicação de conteúdos, por mais disparatados e adolescentes que fossem, mas, neste período de tempo, o facto de sermos exactamente uma versão ainda primária de jovens adultos sem qualquer orientação apropriada de vida fez com que encarássemos os supra-mencionados conteúdos como verdades correctas e indubitáveis em absoluto.
   Mesmo quando a nossa ideia de dar vida ao Luminescente surgiu numa conversa informal online, através do agora praticamente extinto MSN Messenger, nem tudo o que publicávamos era apreciável, de todo. Por mais anos que se acrescentem à maturidade de um adolescente, esta não se encontra ainda estabilizada e, mesmo quando atingir a maioridade, eventualmente necessitará de algumas afinações que só as experiências de vida poderão ajudar a desenvolver. Aliás, permitir-me-ei uma adição a este raciocínio através da qual tenho plena consciência de que o conceito de maioridade é apenas uma abstracção que procura seguir o intuito do concreto em termos de legislação, mas ninguém é indubitavelmente inimputável pelos e seguro dos seus actos quando atinge uma idade igual para todos os cidadãos de um país, que marca, por conseguinte, a passagem de um ser humano em desenvolvimento para a idade adulta.
   Actualmente, que posso dizer ter alcançado um quarto de século de vida, ainda que expô-lo deste modo seja profundamente assustador, como se caminhasse porventura já para a terceira idade, os meus escritos não reúnem consensos absolutos, somente relativos. Não se trata de ter adquirido esta impressão a partir de críticas concretas, uma vez que nem sequer procurei fazer grande alarido à volta do meu regresso aos desabafos online, tirando talvez uma já habitual brincadeira embebida em Photoshop a partir da qual o Sol volta a brilhar e a iluminar os meridianos centrais do planeta; trata-se, isso sim, de uma conclusão filosoficamente acertada e longe do domínio da falácia, por exemplo, da generalização precipitada.
   E o que me traz a esta explicação talvez verbalmente complexa é exactamente a onda que me domina. Estou apaixonado, e estou-o como provavelmente já não estaria há uns bons anos. Entre artistas como eu, a principal questão que surge, embora por outras palavras que não poderei adivinhar com absoluta certeza, ainda que o sentido seja o mesmo, é "quem será esta mulher por quem ele está assim tão profundamente de amores?".
   Muitas pessoas criticam os apaixonados, e o leque de razões não é reduzido. Para ilustrar, alguns exemplos passam por: acreditar no amor propriamente dito; crer em contos de fadas; querer fazer da realidade um romance de leitura facilmente digerida; dizer que sem a nossa cara-metade jamais estaremos completos; etc.
   Ora, há gente para todos os gostos. Quem mantém uma relação sem o romance expectável, apenas por motivos de utilidade em ter um companheiro, fá-lo no sentido meramente biológico, e se aquilo que nos distingue das restantes espécies animais é o raciocínio e o senso, tanto bom como mau, então façamos uso do bom senso para amarmos o outro, não porque dá jeito. É, com todas as letras, ridículo, estapafúrdio, estúpido.
   Já sobre aqueles que criticam sem sequer partilharem a sua vida com outrem, tecer apreciações e comentários não será de todo necessário.
   Portanto, sim, estou apaixonado, continuarei a estar. Não tenho problemas em continuar a escrever vários sonetos, nem que seja um por dia, à semelhança da ideia que Sparks pretendeu passar n'O Diário da Nossa Paixão. É um romance adaptado ao cinema na primeira década dos anos 2000, toda a gente viu, por mais que tivesse detestado e, ao longo de um ano seguido, Noah fez questão de enviar todos os dias uma carta a Allie, infelizmente todas interceptadas pela mãe, que se resumiu a um casamento de conveniência, negando-se o verdadeiro amor e obrigando a filha a ir pelo mesmo caminho.
   Este género de Literatura vende bem, tanto entre homens como mulheres, por uma razão muito simples, mais até do que não ter paciência para entender enredos demasiado complicados e soporíferos: todos precisamos de romantizar as nossas vidas... existir e sobreviver são verbos excessivamente pragmáticos, mais apropriados à lavoura constante para aumentar os rendimentos capitais de cada um. É certo que a sociedade fá-lo para poder viver confortavelmente, mas de que serve semelhante hedonismo, se não há tempo para aproveitá-lo?
   Sejamos felizes com quem amamos e nos quer bem, sem perder tempo a navegar na tristeza do que jamais será remediável.

Come Back


Aurora dos Róseos Dedos

Quero de longe acompanhar de perto
De lira na mão tua melodia,
Peço-te, não mo negues, sou decerto
À altura p'ra tocar esta harmonia!

Não, não te confundas na dualidade
Dos versos, apenas pura poética,
Nada mais se trata, simplicidade
É meu maior dote, não sejas céptica.

Se falhar o ritmo, é do arco-íris.
Perdoa-me, não é mesmo por mal,
Sim porque deambulei no teu olhar.

Sou em modo Goo Goo Dolls, minha Íris
A Música és tu e meus olhos sal,
De tanto que eu choro ao ver-te brilhar.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Namorada no Teatro

Anjo da Música, são os vocábulos
Mais carinhosos que contigo deixo
Nesta rica canção digna de 'fábulos',
Ostentando com amor o teu queixo.

Neste momento, fico por aqui.
As areias do tempo dar-me-ão mais,
Já que inspiração não cessa p'ra ti,
Fruto dos Helénicos imortais.

Simples anel de ouro no dedo usava.
De significado não tinha nada.
Mero adorno, 'inda que enganador.

«Versos de Amor» é que ele de facto amava
Escrever p'rá fictícia namorada,
Que no Teatro viu em todo o esplendor.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Cinderela

A esta hora já a Cinderela
Seria quase Gata Borralheira,
Face às expressões de inveja amarela
De suas irmãs de serapilheira,

Mas há 'inda tempo para o cristal
Calçar ao som do Danúbio a valsa,
Dançando-a c'o seu Príncipe imortal,
Nunca p'ra si uma princesa falsa.

Ao som das doze de mim fugirás,
Pois disso tenho absoluta certeza...
Contudo não temas, mal não farei

A uma delícia que embora assaz
Me toque, fá-lo com toda a pureza
Inflamando-me, nunca imaginei...

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Não Sei Que Foi, Tive Saudades Tuas...

Não sei que foi, tive saudades tuas...
Senti falta do que ainda não és,
Meus olhos, sinest'sia d'íris suas,
Querem ver-te espelhada, em revés.

Fizeste do meu coração cativo
Em tão loucos, diminutos segundos,
Todo eu prisioneiro em teu doce crivo,
Unindo assim nossos perfeitos mundos.

Ritmo, nota, canção, música, musa,
Todo o teu corpo a um som de distância,
Perfeição em mim, partilha, Natura!

Minha paixão o meu amor acusa.
Em erro, vou errante pela errância.
Contudo em compasso vejo-te pura.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Sonata

Beijo-te o teu coração em segredo,
Que com ninguém partilho este momento
Porque é só teu e meu e não do medo.
Viajo em teus lábios ao sabor do vento.

Estudiosos diriam ser um aparte
O que se declama já e agora,
Mas interpretar a Arte de amar-te
É Literatura que não vigora.

Sabes, quando no meu dia te vejo,
Fico logo insuflado e preenchido...
P'ra me sat'sfazer é tudo o que baste.

Acariciar teu rosto é meu desejo
Total, concretizado e deferido,
Mais 'inda quando o amor me roubaste.