segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Borboletas

   A minha rotina nocturna está progressivamente a transformar-se nisso mesmo, em algo programado, mas não necessariamente no mau sentido, muito pelo contrário. Na noite passada, à semelhança de já muitas outras ao longo do Verão, iniciei o meu percurso pelo vale dos sonhos a pensar nela. Mais do que um pensamento abstracto, vi-a muito concretamente a tomar conta da minha imaginação. É uma mulher única, sem sombra de dúvida, mas de cada vez que me insufla o coração com o seu amor, a minha mente rejuvenesce uma e outra vez, como se a observasse repetidamente pela primeira vez, ao mesmo tempo em que me reapaixono pela mais bela entre outras mulheres que terei visto, talvez semelhantes, mas jamais iguais.
   Sonhei com ela. Há quem tenha a capacidade de, mesmo no seio do subconsciente, controlar o domínio do onírico, ou assim o clamam. Já eu, que não tenho controlo algum, consegui incluí-la no meu sonho. Não tenho noção de quanto tempo terá durado ao longo das minhas horas de sono, mas fico sempre com aquela sensação de que existe um enorme desfasamento entre as vinte e quatro horas a que estamos habituados no contexto da realidade e o tempo que, muito simplesmente, quisermos que os sonhos tenham.
   Os seus cabelos, dos quais logrei sentir o perfume, variavam com a iluminação que sobre si recaía, ora um pouco mais dourados, em caracóis, reflectindo o brilho do Sol, talvez vaidoso consigo próprio, ora um pouco mais morenos sob o luar, prosseguindo a sua metamorfose na altura do crepúsculo, roçando o ruivo, em tons de fogo vivaz. Fez-me recordar a Fada Oriana, uma daquelas leituras já tão nos confins da memória, mas que, ainda assim, permanece tão actual e tão apropriada à situação do presente.
   Os seus olhos miravam-me como que penetrantes, procurando ler os imensos segredos que o meu coração ia revelando, um a um, pelo veículo de transmissão mais fiável da verdade, justo o meu olhar. A minha linguagem corporal certamente far-me-ia parecer um daqueles actores que interpretam personagens através do recurso de estilo da personificação. No caso, creio ter-me assemelhado a uma vara verde, embora, agora que reflicto sobre isso, queira ver-me como tendo parecido uma cana-de-açúcar, planando ao sabor do vento, como se imensas borboletas em simultâneo me abanassem e me deixassem nervoso, temendo dizer algum disparate ou fazer um gesto menos pensado, mas, em todo o caso, transbordando de doçura por aquela mulher que tinha na frente.
   Ela é adulta, sim, mas carinhosamente, com todo o respeito que tenho por si, naturalmente, é Menina. Vejo-a Menina. Não se trata de uma questão relativa a quem já viveu mais ou menos, idades são apenas números. Vejo-a Menina porque tenho-a como a minha bonequinha... a quem quero abraçar, segurar no meu regaço e cantar canções de embalar enquanto nos sentamos na areia da praia deserta, já fresca da brisa marítima e brilhante por acção da cúpula celeste que nos resguarda lá do alto, onde as estrelas enfeitam o azul-noite do céu, junto do astro maior, a despida Lua branco-pérola.
   Enquanto canto, sussurradamente, porque ninguém está por perto e o único som audível é o quebrar das ondas da praia-mar sobre o horizonte que, ao contrário do outro, pode ser alcançado com o banhar dos pés descalços, os seus lábios carnudos e luminosos do batom vermelho-sangue permanecem num sorriso. É nessa altura que chego a um complexo dilema, tendo de decidir se perpetuo o canto ou se, sorrateiramente, o interrompo num beijo profundo em que nos perderemos ambos, sendo que, por meu turno, estarei a sorver o licor inebriante da sua língua, como que me renovando a energia necessária para continuar a cantar, embora esteja, por esta altura, cativo da sua boca, e queira apenas deixar-me ficar como residente permanente do seu coração, sem retornar à contagem do tempo das habituais e aborrecidas vinte e quatro horas de cada dia.
   Dou pelos dedos de uma mão a ostentar a sua cabeça, entrelaçando-se por entre os aromáticos cabelos, enquanto os dedos da outra acariciam suavemente a sua pele sedosa, percorrendo com as pontas, uma das zonas mais sensíveis dos nossos corpos, o seu esculpido pescoço, por onde sei que os meus lábios vaguearão, não sendo capazes de resistir, nem tão-pouco querendo, ao beijo que deixarei aí repousado, uma vez, duas vezes, tantas quantas me for possível.
   Todo o corpo da minha bonequinha está ao meu alcance, e enquanto lhe beijo o torneado pescoço, os dedos da mão que aí estivera há uns minutos seguem para a sua barriguinha. Agora não só as pontas dos dedos deslizam sobre o seu vestido, mas toda a constituição da minha mão, até ao ponto de viragem em que ostentará as suas costas, tornando-a, toda ela, cada vez mais minha. Não minha «propriedade», não unicamente minha e de mais ninguém, pois que não sou egoísta e sei que devo partilhá-la, mas... amada, só minha. Bonequinha, só minha. Musa, só minha. Namorada, apenas e só minha.
   É então que descubro que devo fazer o pedido. Alguns poderão dizer que rótulos não são mais do que isso, mas já não tenho apetência para me importar com o que alguns ou muitos poderão pensar sobre a minha vida. Quero-a, queremo-nos. Assim, embebido na sua essência, desprendo os meus lábios dos seus, a custo, e reabro os olhos, emparelhando-os com os seus. De novo a sua boca se torneia num sorriso tão puro e genuíno. Reúno forças, coragem, e pergunto, focado nas suas íris:
   ― Posso ser o teu Namorado?
   De súbito, os seus olhos alcançam um brilho ainda maior, humedecem-se, e os seus lábios abrem-se num rasgado sorriso, revelando os seus sempre tímidos dentinhos.
   Acordo. Ainda é de madrugada. Estou deitado na minha cama, a sós, tal como quando adormecera, mas o sonho continua tão vívido como até há instantes. De novo cerro os olhos e procuro entregar-me uma vez mais ao sono, na esperança de rever a minha bonequinha tal como ela estava naquela imaginada noite, recordando o momento do seu largo sorriso, só para ouvir a sua doce voz pronunciar a mais desejada resposta à pergunta que ficara a pairar no firmamento.

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