sábado, 27 de março de 2010

Mensagem do Dia Mundial do Teatro 2010

Teatro é muita coisa. A sua definição primordial é 'o lugar onde se vê' ou 'o lugar onde se vai para se ver'. Surgiu no seio da cultura da Antiguidade Clássica, na Grécia, muito básico na sua composição. Tratava-se de uma simples celebração de variados festivais que decorriam ao longo do ano, sendo que o mais importante tinha o nome que hoje traduzimos por 'Grandes Dionisíacas', e isto porque Diónisos não só era o deus do vinho ou da feminilidade, mas também do Teatro.

Competiam nestes festivais variados poetas cada um com uma trilogia trágica e um drama satírico, género que não sobreviveu ao efeito das areias dos tempos. Pela excelência dos seus textos, ficaram principalmente conhecidos neste ramo Ésquilo, Sófocles e Eurípides, aqui ordenados do mais velho para o mais novo. A tragédia tinha o objectivo de criar no espectador, hierarquicamente sentado nas bancadas do théatron, ou compaixão ou temor pela figura central do espectáculo, dirigido pelo poeta.

Tinha também o objectivo de mostrar o que não deveria ser feito, sob pena de restar como única saída a morte, habitualmente por suicídio. No final, depois de avaliadas as trilogias e dramas satíricos pelo júri, era escolhido um vencedor. Das centenas de peças escritas pelos vários tragediógrafos gregos, só dezenas restam, uma por cada autor.

Este era o Teatro na sua primeira fase. Mais tarde, com a ascensão da Igreja Católica Apostólica Romana ao trono europeu, o Teatro morreu, ou assim pensava esta instituição. Para ela, a versão oficial de Teatro passava pelo drama litúrgico, que supostamente possuía um valor didáctico a transmitir aos fiéis. Também esse Teatro morreu, mas o profano, o de rua, o verdadeiro, manteve-se activo e bem vivo.

À volta dele geraram-se as teorias mais incríveis e mirabolantes, como pedir ao público, fonte de sustento do Teatro, que imaginasse o que faltava ao cenário; escrever somente em verso, porque aí está a verdadeira essência da Arte Teatral; desprezar o texto, que é o elemento menos importante; remover actores de cena; colocar actores em cena escondidos atrás de máscaras, ou imóveis, ou calados; ignorar o espectador por intermédio de uma designada 'quarta parede'; levar o actor a encarnar até ao tutano a personagem como se dela se tratasse, ainda assim tendo a consciência de que continua a ser actor; fazer do actor um demonstrador; mostrar deliberadamente teatro dentro do teatro; ridicularizar o texto levando-o ao absurdo, enfim, uma série de coisas diferentes.

Hoje, para se fazer Teatro, basta apenas reunir um grupo de miúdos e brincar com eles, mostrando tudo o que se pode fazer com o corpo ou com a voz, criando as mais ínfimas personagens e situações. O efeito disto é o sorriso que se vê no rosto deles, perante a espectacularidade que encontram naquele momento que não vivem todos os dias da sua vida, mas que deviam viver. E é essa a missão dos artistas da Arte Teatral, espalhar pelos quatro cantos do mundo tudo o que o Teatro tem de incrível, porque sem ele o mundo seria muito diferente, quem sabe se para pior.


Viva o Teatro!

terça-feira, 23 de março de 2010

My Dearest Love,

You have no idea how I am feeling exquisitely pathetic right now, as I am about to, or try to, for that matter, put into words all that we have been living now for this whole time. It is indeed a great quest for me to verbalize this sort of feeling one prefers to feel when one is together with someone else.
And then, I cannot even imagine what you will think of me or this letter, for I foresee that you will certainly mock me for my loathing and ridiculous phrases.
Don’t expect me to go through things like your amazing hair, all the way curled and fair, sunlight-shining. You already know that I fancy a lot smelling it, and touching it, and rolling it into tiny pig-tailed shapes. You also do realize, of course, that there is no point in worshipping your eyes, which mesmerize me with their innocent glance over me, as they sparkle like some sort of jewel taken from deep down inside the heart of the ocean.
And why on earth should I even mention your tiny little round-ended nose? Perhaps because we love doing that eskimo-kissing quite often, as if we were little children playing about, free of any concerns that the world might want to put on our fragile backs.
Oh, no, I would never dare talk about your naturally glossy lips. You know perfectly well what they do to me, I cannot even feel myself, my earthly body drops by its own as my soul rises and practically flies away, only being bond to you and your fleshy, tasty lips, that search for my own as in search for a frivolous passion one cannot understand if one isn’t connected to true love, which is what we have, knowing nothing of it and, at the same time, getting lost in time because of it.
What? Cherish your neck? No, I refuse to evaluate your complete anatomy, for it does not make any sense at all, it is rather nonsense, actually. If you want me to talk about it, why not mention as well the whole of your limbs, or your tummy, or your breasts, or whatever you would like to hear me talk about? Why don’t I just tell you that your grace leaves me powerless, why don’t I just tell you that you’re absolutely divine? Even touching you in such a carnal, vicious and sinful way has its own purity. Because we, you and me both, are in this together.
You seem so untouchable and yet you are quite the proximity one usually has to look for years and years of devotion and dedication to life, that hideous scoundrel that will teach us nothing softly, always recurring to the harshest of ways. But there is no point in blaming life for anything at all, right now, because I have you, and as long as this keeps that way, I shall remain very happy and feel pretty much glorified by the heavens for letting me see what really there is in you, in your heart, which I have known for so many time now. There is no way I could ever lose your sense of humour, your joy, your loyalty, your grace, your passion, your caring, your love.
In other words, there is only one thing left to say, but please, don’t let this be something that could annoy you, or make you look at me as some pathetic being, because this is the truth: I love you.
Exactly the way you are.

terça-feira, 16 de março de 2010

O Pedido

Hoje, à semelhança de outros dias que me correm nas veias, é um dia em que vou executar uma acção bastante importante para mim e que, assim o espero, trará os mais túmidos frutos.
Estamos na Primavera, já. Apesar de haver uma pequena chuva de vez em quando a calcar o pavimento na sua espessura umas vezes mais fina, outras, mais grossa (como é fisicamente mais do que óbvio mas literariamente tosco), o Sol é o astro-rei, é quem domina esta época, bem como o dia de hoje. Está muito, muito calor, e o recurso a óculos de sol é inevitável, se não queremos andar para aí a franzir constantemente o sobrolho para nos protegermos da luminosidade.
Sempre considerei que era com alguma antecedência que grandes empreendimentos deveriam ser projectados, e aquilo que quero fazer é uma viagem por tempo que agora considero indefinido até à minha capital europeia de eleição, e de eleição porque, primeiro, foi a única que visitei até agora, e depois, porque me sinto em casa sempre que toco aquele solo insular que se encontra sob um tempo tão estranho quanto o podem ser os habitantes daquele local, que agora até estão praticamente apagados, porque o domínio do imigrante é inacreditável.
Mas acontece que não quero ir sozinho. Quero levar comigo uma pessoa muito especial para mim. Há-de perceber-se de quem se trata ao longo do caminho que levarmos. Mas antes disso, tenho de mencionar uma coisa algo sinistra e, ao mesmo tempo, desproporcional ao século vinte e um e hilariante. É que aquilo que eu vou fazer, e que me está a provocar simultaneamente um certo gozo e nervosismo, aumentados pelas hormonas aos saltos por causa do calor, é qualquer coisa como pedir a mão desta princesa ao pai dela, ou seja, pedir-lhe autorização para viajar comigo. Só comigo, o que é uma ideia, temo eu, ligeiramente obscura aos olhos do patriarca. Mas já disse à tontinha para o ir prevenindo de que ia falar com ele, hoje à noite, quando estiver um tempo mais fresco e mais calmo, tanto no calor, como no bom humor dele.
Recebo uma mensagem. É ela, cujo nome na lista de contactos foi transformado para uma coisa só minha, porque o seu nome real é comum a todos, e eu quero guardar para mim um pequeno pedaço dela que seja só meu, porque dei a mim próprio esse direito, e porque soube que valia a pena fazê-lo. Assim não preciso de ver reticências a substituir o comprimento dos seus pomposos apelidos. Diz ela que já posso ir andando lá para casa. Antes de me imaginar a dirigir-me para o carro com o sorriso nervoso, ela pergunta-me se estou preparado e também que caminho vou tomar. Sugere a auto-estrada, com um ícone de expressão ao lado a deitar uma pequena língua de fora. Eu confirmo-lhe, efectivamente e sorrindo de volta, que vou seguir pela auto-estrada até à sua morada, porque o caminho rústico que a própria outrora me ensinara, seguindo à minha frente, não me ficou de todo na memória. Por isso prefiro dar uns trocos virtuais à Brisa, eu até estou algo recheado porque vou fazer a viagem, por isso, não tem problema. Respondo também que sim, que me sinto preparado, e que terei de jogar no campo do improviso quando estiver a comunicar com o manda-chuva. Ela responde-me com uma expressão de riso. Já antes eu próprio me rira com o que estava a escrever.
E enquanto escrevia, estava a descer a escadaria do condomínio onde vivo, saindo pela porta principal até ao meu modesto carro, que, ao contrário do dela, e eu sei que ela implicaria comigo se lhe repetisse isto, tem uma embraiagem que está muito longe de acabar. Mas sim, claro, ela tem um jipe e é diferente. Não há trânsito na auto-estrada. Em cinco minutos estarei lá num instante, basta-me sair, contornar uma rotunda, chegar a outra, sair na primeira oportunidade e depois virar à esquerda. Já da primeira vez que lá cheguei eu memorizara estas indicações, transmitidas também por uma mensagem. A primeira vez que lá jantei. E esta era agora mais uma, mas pelo menos estava previamente combinada. Oh!, só de imaginar a expressão do pai. Ela adora que eu o imite, e só sou capaz de me lembrar de uma única frase para o fazer, tenho de o observar melhor e conseguir fazer outras coisas, embora esteja bastante parecido.
Saco do travão-de-mão. Já cheguei ao destino. Ao contrário daqueles tempos de Inverno rigoroso, o sol continua bastante em cima para as horas a que nos encontramos. Sinto uma certa vergonha em tocar directamente à porta, por isso aviso-a por mensagem de que já cheguei. O trinco abre, tenho de puxar o portão para fora, e depois empurrá-lo, para o conseguir abrir. Avisto-a. Está tão bonita, hoje. E em verões. Hoje, sim, ela tem razões para estar assim, com o mesmo vestido com que a conhecera pessoalmente, mas sem o pormenor dos óculos de sol em formato de coração, tipo Lolita, uma comparação que ela despreza. Está sorridente. Foram poucas as vezes até hoje que a vi triste ou taciturna, de resto. Por isso me ficam sempre na memória aqueles olhos com que me olha neste momento. Um verde-esmeralda absolutamente brilhante. Aproximo-me a passo largo na ânsia de a abraçar, e receber um abraço que só ela sabe dar. É seguro, confiante, forte. É o melhor remédio do mundo, se a tão longe podemos chegar. Enquanto a aperto contra mim, consigo sentir-lhe os cabelos, cuja essência me toca o nariz. São loirinhos, encaracolados, transformam-na numa bonequinha para a qual dá um gosto incrível olhar. Depois de uma longa respiração e de uma beijoca no seu ombro esquerdo, porque os nossos corações se haviam tocado naquele momento, naquele abraço, desprendemo-nos enfim. Quanto tempo durou, não sei precisar. Pode ter sido um minuto, quem sabe dois. Mas esse é o tempo exterior, é o tempo irrelevante. O tempo que está no nosso interior, esse sim, é o que conta.
Entramos. Digo olá à irmã mais nova, a bebé da casa, que já conheço de outras ocasiões, depois cumprimento a mãe. O pai ainda não chegou. Suspiro fundo. Ufa. Aproveito aquele tempo de intervalo para pendurar o casaco no bengaleiro, rodar os braços para a frente, depois para trás, como quem se prepara para entrar em campo e jogar. Portão. É o pai, exclamam ambas as irmãs. Estou feito. Chegou a hora.
É óbvio que olhei para o senhor e agi muito normalmente, não fiz qualquer espécie de vénia como quem cumprimenta um adversário. Dei-lhe um aperto de mão, como se faz à homem, daqueles bastante seguros e apertados para mostrar convicção. Estava à espera que ele me levasse para a conversa, ou que começasse a sugeri-la naquele espaço de tempo morto em que esperamos pelo jantar, mas não, já estava a ser servido. Graças a deus. Ou Deus, para que não seja considerado herege.
Desta vez, ele não faz qualquer tipo de comentário sobre o facto de o jantar ser ou não insuficiente para a minha pessoa, que é convidada daquela noite. A mãe tratou do assunto, não tem problema. E só rezo para que a princesa não se lembre de me pedir para fazer uma imitação dele mesmo ali à sua frente, sob pena de vir a complicar o processo de conseguir convencê-lo a deixá-la viajar comigo. O jantar termina, a bebé ajuda a mãe a arrumar a mesa. A princesa tem de ir lá acima, vai escovar os dentinhos, e pede que vá atrás dela só para me mostrar uma canção nova que tentou aprender e tocar na sua guitarra acústica. De imediato, tentando fugir ao meu único propósito de estar ali, digo-lhe que sim, que vou com ela. O pai imediatamente interrompe. Diz que quer conversar comigo, ela pode muito bem mostrar o que tem a mostrar depois. De preferência à luz do pleno dia, e não ao anoitecer. Claro.
Acontece então que o pai senta-me no sofá com um simples gesto. Incrível, o poder que ele tem. Um só gesto, decidido e indubitável, e fez-me sentar. Foi buscar uma garrafa de brandy. Tirou dois copos. Serviu-os a ambos, e deu-me um. Perguntou-me se eu aguentava o teor daquilo, numa de testar a minha força ou fraqueza. Disse-lhe que estava inteiramente confortável. As coisas começavam a ficar divertidas, aos poucos. Eis que me pergunta exactamente quem eu sou, o que faço, quais são as minhas perspectivas para o futuro, que intenções tenho para com a filha. Sim, é óbvio que me fez esta pergunta. Todo o pai teatral quer um dia fazer esta pergunta a um rapaz que tenha alguma espécie de interessa na sua querida, como seja levá-la a viajar de avião para um país distante em milhares de quilómetros. Eu. Sim, bem. Tranquilo. Faço uma piada ou outra no meio do meu discurso extra-racional, mas olho para a cara de frete dele e prossigo sem piadas.
Passo a explicar-lhe as condições desta viagem. Começando imediatamente no avião, sendo que existem três lugares do corredor à janela, tem de ficar uma pessoa desconhecida no meio, ela à janela, para ver as nuvens e sonhar em tocá-las, talvez, e eu no corredor, para ser cavalheiresco e pedir um chá e uma sandes à assistente de bordo, mas sempre distante da princesa, que se perde com as vistas. Chegados à pousada da juventude, porque foi isso que combinámos que ia acontecer, não num hotel, porque os trocos não são assim tão largos, ficaremos num quarto só para os dois, não num dormitório, para não haver cá misturas com outras pessoas. Ele levanta o sobrolho quando digo as palavras quarto, só, dois. Mas passo a explicar de imediato. Esse quarto contém camas separadas, uma numa parede, a outra ao pé da janela. São precisos para aí cinco passos até chegar de uma cama à outra. Incrivelmente, digo-lhe que consegui um que tem dupla casa de banho, para que eu não me engane, ensonado, entre aspas, e entre por ali adentro enquanto a filha toma duche. Eventuais fotografias que se tirem, juntos, mas com uma noção de distância entre os corpos, para não haver contacto excessivo. Jantares, nunca de mãos agarradas. Passeios, sem dar o braço. Sempre com muito respeito pela integridade da princesa, cuja pureza fica assim livre da sujidade, soberba e corrupção das minhas mãos.
Silêncio.
Não sei para onde olhar, ou o que fazer. Dou um grande gole de brandy e procuro aperceber-me se estou a suar muito ou não. Finalmente o gelo quebra. O pai chama a filha, que, obviamente, estivera no cimo das escadas a escutar a conversa e a rir-se daquilo tudo para si própria. Ele olha para os dois jovens, que estão sentados no sofá lado a lado, de frente para o patriarca. Ele diz-lhe que passei com sucesso a prova e que posso levar a princesa a viajar comigo. Deus do céu, que dia mais feliz. Só Ele sabe como é importante. Num impulso, quase que nos abraçamos, mas ele aclareia a garganta e ficamos por ali, apenas trocando sorrisos cúmplices.
Dou as boas noites a todos e vou andando para a entrada da casa. A princesa encosta a porta. O pai não se dá ao trabalho de meter o nariz. Dou-lhe um enorme beijo na face rosada. Ela retribui. Um abraço. Um silêncio. Um momento. Desprendemo-nos. Saio. Fecho o portão. Entro no carro e começo a conduzir para regressar a casa. Dou por mim a sorrir. Hoje sim, sinto-me feliz.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Hoje

Hoje é um dia muito especial.
Acordo cedo, perto das sete e meia da manhã, sem contar com a ajuda do despertador digital, porque hoje consegui despertar sozinho, tal é a ansiedade que tenho vindo a sentir já desde ontem à noite. Não é que eu seja uma pessoa que não tem brio em si própria para não se aprimorar e pôr-se apresentável à sociedade nos restantes dias da sua vida, mas, como hoje é um dia diferente, procuro embonecar-me o melhor possível.
Vou tomar um duche rápido, tento não demorar mais de dez minutos debaixo da água quente que me escorre da cabeça aos pés, de modo a poder fugir ao ligeiro frio que se instala no quarto de banho, reflectido e reverberado pelos azulejos pintados sem mão humana. Quando saio, o meu cabelo está já praticamente definido, o penteado, isto é, que é, na verdade, despenteado, como passei a usar há uns tempos ou, melhor dizendo, a reutilizar, porque durante pouco mais de três anos deixei-me encantar pelas caracoletas que até então desconhecia possuir. Enfim, basta dar-lhe uma fraca secadela para o pôr de vez no sítio. Há pessoas que afirmam conhecer as outras de olhos fechados só pelo odor natural, que é muito próprio e identificativo de alguém. Honestamente falando, desconheço que odor natural seja o meu, mas como nunca ninguém se queixou de cheiros incomodativos, parto do princípio que, pelo menos, não seja mau. Em todo o caso, resolvo disfarçá-lo no pescoço com a fragrância do costume, que tem uma certa aproximação à canela, segundo já me foi dito.
Antes de entrar no quarto, já a indumentária que penso favorecer-me está trancada na minha mente, sei com toda a certeza aquilo que é melhor escolher. Não sou uma pessoa de muitas cores, aliás, baseio-me sempre, ou quase sempre, no preto. Outros possíveis complementos virão a seguir. Feito tonto, ponho-me a pensar e disperso-me por completo enquanto estou no processo de calçar uma simples meia negra. Umas vezes suspendo essa acção, outras vezes continuo a executá-la, mas em devaneios, com o olhar fixo num ponto qualquer e com a boca semi-aberta, deixando ver um pequeno traço da dentição. É aquele olhar canastro que eu tanto aponto a imensa gente.
Eis que acordo. Estava em vias de fazer qualquer coisa. Ah, claro. Era a meia, e agora vêm os sapatos. Sim, porque nos últimos anos entreguei-me aos ténis, mas em dias especiais, sou bem capaz de os colocar de lado. Olhando o despertador digital que desligara antes por não precisar dele para despertar do sono que não tinha, reparo que o mostrador ficou a piscar repetidamente, como se tivesse falhado a energia eléctrica, mas não, as horas estavam certas, ou já desviadas do tempo real talvez em três ou quatro minutos, sendo que adiantar o relógio é a única maneira mais rápida e prática de fazer parar aquele maldito piscadoiro. Estou dentro do horário, não hei-de chegar atrasado. Ou então em cima da hora, mas atrasado não, não hei-de ficar de fora. Pego na papelada e saio.
Não sou pessoa dada a transportes públicos. Já conheço de trás para a frente a conversa das ecologias e dos dióxidos de carbono e etc., mas não consigo deixar de lado a minha habilitação legal para condução de automóveis ligeiros, que tanto dinheiro custou a obter, bem como tempo precioso em que podia ter feito outra coisa qualquer que não testes cujas perguntas comecei a decorar ou a assistir a aulas chatas de código. Por isso mesmo saco da minha chave que me destranca o fecho centralizado e entro no meu carro, o meu primeiro carro, que, apesar de na altura ter pouco mais de cinco anos, estava impecável. Durante grande parte do caminho não encontro muito trânsito, só mais na parte final do percurso, que é quando as coisas começam a afunilar.
Durante o dia, apesar de saber que devo encontrar-me concentrado para fazer as minhas coisas como deve ser, a mente foge de vez em quando, perde-se uma vez mais, enquanto me encontro a fazer um gesto qualquer aparentemente sem significado nenhum, mas que no fim acaba por querer dizer qualquer coisa, mesmo que seja só para mim e não para outras pessoas que se tenham perdido a observá-lo.
Durante a tarde, não paro de olhar para o meu relógio de pulso, oferecido pela minha única tia-bisavó há cerca de três anos. Até considero que aquilo que me contam é interessante, mas na verdade não me apetece muito estar ali, porque a hora aproxima-se.
Terminado o martírio, verifico se está tudo bem, se tenho tudo no sítio, se estou ainda apresentável, se não perdi o charme com coisas mesquinhas que entretanto aconteceram à minha volta. Logo depois, volto a pegar no carro e, visto que não há mais nada a fazer, faço-me à estrada.
Ah, aquela sensação interior no meio do peito. Estou a senti-la revelar-se, à medida que me vou aproximando. Uns falam em friozinho na barriga, eu falo em centro do peito a contorcer-se. É engraçado como estas coisas assim físicas vêm ao de cima e se misturam com as emocionais. É uma ansiedade que não deixa de ser boa e apetecível, mesmo a sério.
Cheguei ao destino. A porta do lado do pendura abre-se, e esse mesmo lugar passa a estar ocupado. A porta fecha-se. Ligo a embraiagem ao motor depois de soltar o travão e arranco até ao destino onde o destino me quiser mandar.
Afinal, porque é este dia tão especial?
É muito simples, na verdade.
Estou com ela.