domingo, 18 de outubro de 2015

Mudámo-nos


... rumo ao Weebly, muito mais fácil de manusear.
Este blog continuará activo na secção «Thesaurus», que se encontra na barra de navegação, para que toda a nossa história permaneça disponível para consulta, referência, ou mera repetição de leitura.
Encontramo-nos por lá, com diferenças visuais, sem alterações de estilo de escrita.
Clicar sobre a imagem encaminha o leitor para o novo espaço.

sábado, 17 de outubro de 2015

¡Ay!, Linda Amiga,

Escrevo-te. Escrevo-te sempre. Está claro que não te obrigo a ler e, como referi anteriormente, se não conversar sobre isto, hei-de ter uma vontade interior de gritar, o que não quero. Mesmo para dentro, não gosto de arruinar as minhas cordas vocais.
Ao que parece, o Outono começa realmente a fazer-se sentir neste dia. Eu, constantemente tão acalorado, sinto frio. Não só porque o vento sopra vigorosamente, mas porque não estás. É verdade. Tudo o que te tenho dito, de resto, é a mais pura verdade. Não me atreveria a mentir-te. O meu coração é puro. O teu também, sei-o.
Seguramente, lembrar-te-ás da minha falta de jeito a tentar convidar-te para sairmos, na primeira metade do Verão. «Vamos tomar chá, nem que seja iced tea, afinal ainda está calor». Consigo ser tão disparatado que ganho vontade de me rir de mim próprio. Mas tu, tão amorosa, dizes-me que adoras chá e que é uma boa ideia. «Que menina tão saudável!», reparo. E tu, que dizes «só um bocadinho». Rio-me. Mais para mim do que para o exterior, mas, mesmo no meu eu, o gracejo é volumoso, com ímpeto. Toda tu és belíssima. Apelido-te de várias formas, «Bonequinha», «Musa», «Pequenina», «Princesa», enfim. Todo um conjunto de carinhos que vejo em ti, na tua essência. Pergunto-me, por vezes, se não serei demasiado poético. Desculpa, mas deve ser da época. Cinco anos depois do lançamento do primeiro épico. Provoca algumas saudades. Acho que foi por andar a escrever «obras» na última meia década que não regressei aqui. Hoje também me encontro a escrever «obras», mas senti a necessidade de voltar. É talvez um cantinho que deixo reservado para os desabafos. Não tenho por hábito escrever textos completos em cadernos, só alguma ideia que surja subitamente, uma vez por outra. Creio que me é desnecessário rascunhar antes de passar à versão final. Será pessoano da minha parte, eventualmente. Heteronímia, Caeiro. Não guardo rebanhos, mas é frequente fazer versos sem pensar muito. A métrica costuma ser acertada logo à partida.
Disse que não desisto de ti. Reafirmo. Quero tomar chá contigo. Ou o pequeno-almoço. Ou almoçar. Ou jantar. Cear, até. Tanto me faz que refeição é ou deixa de ser. Pode ser apenas um copo. O que não me é irrelevante é a tua companhia. Se não for contigo, pouco sentido fará. Estarei a sós, se não levar ninguém. Não estarei contigo, se quiser levar outra companhia. Não é nenhum raciocínio extraordinário, mas faz-me sentido por enfatizar como a tua presença é importante para mim.
Acredito que seja difícil para ti creres em mim. Se estivesse no teu lugar, porventura tomaria a mesma atitude. Mas isto não passa de uma suposição. Tens uma identidade própria, não sou eu que devo afirmar o que pensas ou o que sentes, jamais teria essa pretensão.
Apenas desejo ver-te, prender-me nos teus olhos. Não preciso de trocar palavras contigo. Não preciso de tocar-te, se achares que deva aquietar-me. Ter-te à minha frente chega-me.
Gosto de ti. Porquê? Não me interessa. Só isso importa.

«Só Acontece nos Filmes»


When Harry Met Sally (1989)
Billy Crystal e Meg Ryan

Quando o cinema tem o condão de mostrar-me o que está a acontecer na minha vida com uma exactidão invejável.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Medo

O tempo tem passado. O silêncio vai ficando. Por entre os dedos correm-me incontáveis grãos das areias do tempo. Deslizam suavemente, como se aguardassem por uma qualquer interrupção súbita que lhes cesse a queda contínua rumo ao solo, numa espiral interminável, voltando sempre ao princípio, depois de virar a ampulheta uma e outra vez, quantas forem necessárias.
Não me conheces, eu sei. Eu também não te conheço. Por isso mesmo é que gosto tanto de ti. Que tudo o que tivermos de descobrir sobre o outro fique para depois. Só quero encontrar o meu olhar com o teu e nem isso me permites.
Estás a dar-me o tratamento do silêncio. Não me deves nada, claro que não, nem tão-pouco venho cobrar-te o que quer que seja. Sinto-me triste, apenas, repleto de mágoa, que é o mesmo que experimentar um incomensurável vazio no meu interior.
«Sufocante», disseste. Não encontrei o equilíbrio necessário. A ânsia em falar-te era demasiada, mas o silêncio que reinava era avassalador. Ainda hoje o é. Há quem prefira ouvir «não» ao tratamento do silêncio. Pessoalmente, prefiro sempre um sim, ou um não temporário que possa converter-se posteriormente numa resposta positiva, sempre dói menos. Já o verso branco... é poesia que me fere.
Não sou nem nunca fui monstruoso. Nunca sufoquei ninguém, não é agora que me interessa começar. Não agora, não nunca.
Eu sei que tens medo. Não te tenho à minha frente provavelmente desde a Primavera, mas sei lê-lo em ti. Chama-me controlador, obcecado, asfixiante, se quiseres. Sabes tão bem quanto eu que características dessas eu não tenho. Também sei que precisas de ganhar confiança, tu mesma o enunciaste. Mas esta certeza te deixo, se não me deixares provar que podes confiar em mim, então palavra alguma conseguirei trocar contigo. Até esta noite abafada de Verão que não quer partir, mas gélida da solidão que me assiste, tenho vindo a oferecer-te as minhas palavras, não a trocá-las, porque nem disso me fazes digno.
Agora diz-me, sendo assim tão vil como me pintas, dar-me-ia ao trabalho de desejar por ti? Importar-me-ia em desabafar através de um texto que não lerás o quanto me magoa não pronunciares uma única sílaba? Eu não aprecio «dar voltinhas». Não gosto de andar a passear mulheres por luxúria para deitá-las fora na manhã seguinte. Línguas fúteis não falo.
Podes guardar silêncio quanto tu quiseres, mas disto não duvides, eu não desisto de ti. Não é orgulho pessoal, coisa nenhuma. É saber simplesmente que está em ti e em mim a solução para nunca mais voltarmos a perder tempo.
Não desisto de ti.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Escola de Atenas (Manifesto Para Um «Exercício Comentado Sobre a Consciência do Actor em Cena»)

Há corpos que parecem autênticas obras de arte. E quando digo arte, há um encadeamento lógico que se forma na minha mente: Arte, Estética, Belo, Filosofia, Grécia, Atenas. Bem-vindos à Escola de Atenas!
Existe um problema do foro filosófico que tem vindo a perseguir-me, e que faz com que eu me encontre no seio da Escola de Atenas contemporânea. Quem diria que Platão e Aristóteles, mestre e discípulo, caminhariam lado a lado com perspectivas do mundo completamente diferentes?
Encontro-me dividido por duas doutrinas filosóficas que nada têm a ver uma com a outra. De um lado, o Empirismo – aquisição de conhecimento através das sensações, dando primazia aos cinco sentidos. Do outro lado, o Racionalismo – aquisição de conhecimento através da dedução e do intelecto. Tanto um lado como o outro procuram convencer-me dos seus díspares pontos de vista.
Aqui (lado do Empirismo), dão-me argumentos como: “don’t worry, you’ll get it by the hand of time... it’s totally natural, just let yourself go, feel the energy that’s surrounding you. For instance, take my hand. Is it my hand that’s touching the air, or is it the air that’s touching my hand? There’s a whole lot different possibilities…”.
Deste lado (lado do Racionalismo), dão-me argumentos como: “é preciso ter coscienza, não estejam à espera de umas energias quaisquer que vos atravessem o corpo e vos digam para onde têm de ir, vocês é que decidem especificadamente para onde querem ir, é uma questão de coscienza e de decisão”.
Enfim, encontro-me dividido porque, no fundo, não sou capaz de pensar somente, mas também não sou capaz de sentir somente. Dizem-me para falar sem pensar. Não consigo. Uma coisa é indissociável da outra. Como é que eu sou capaz de ter um discurso automático sem recorrer ao intelecto para produzir uma mensagem ou um logos com encadeamento lógico que seja compreensível ao cérebro humano? É impossível.
Outra questão que tem vindo a preocupar-me é a ocupação do espaço. Nos últimos cinco minutos, andei a deambular de um lado para o outro, sempre em linha recta, sem dar uso ao resto do espaço que me rodeia, o que é algo de preocupante para muitos que vêem o actor constantemente no mesmo sítio. Tive em tempos um pedagogo que tratou de me ensinar melhor do que ninguém como é que o espaço deveria ser ocupado. Dizia assim: “vamos ocupar o espaço, isso, isso! Você tem de equilibrar a jangada, senão ela vira-se! Olhe ali uma brecha vazia, corra para lá! Você também! Sinta que está a caminhar sobre areia que está muito quente e que não pode ficar muito tempo no mesmo sítio, senão queima-se! Muito bem, sim senhor, isso é interessante! Guarde isso!”.
Transmissão terminada.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Falta

As lágrimas nunca serviram de solução para nada.
São só desabafos, pequenos suspiros... que, tanto podem ser silenciosos e ocultos, como berrantes e à vista de todos, para mal dos pecados. Muito raramente se dão a mostrar por motivos de alegria. Mais facilmente surgem pela mão rugosa da tristeza. Mas também é verdade que decidem aparecer, muitas vezes, sem motivo aparente. Talvez se sintam guardadas há demasiado tempo e por isso forçam a sua saída, para respirar ar puro, supostamente tido como mais leve do que aquele que as abafava na zona do interior.
Seja qual for a razão que acompanha as lágrimas e que as transforma, seja em algo que semelha gotículas de orvalho que rapidamente poderão desaparecer, seja em cascatas que insistem em continuamente jorrar, sem possibilidade de fechar a torneira quando se quer, elas surgem involuntariamente. Ninguém chora porque quer. Ninguém gosta de se ver a si próprio ao espelho, com um semblante tingido de vermelhidão à conta das emoções quentes que brotam dos olhos raiados de sangue e se afloram nas maçãs-do-rosto, com lábios secos da respiração ofegante, entortados no desenho que a natureza com tanto cuidado pincelou.
O facto de alguém ter as suas emoções desequilibradas não serve de desculpa para justificar um daqueles momentos que costumam surgir no final do dia, em que alguém se encosta a uma janela que se molha dos dois lados, sendo que do lado de fora a causa é a chuva e, do lado de dentro, as lágrimas. Não serve de desculpa nem tão-pouco é uma razão.
Ninguém pode esperar que seja possível haver harmonia, se o primeiro ponto não se unir ao último, sendo impossível desenhar uma circunferência perfeita.
Existem motivos para chorar que se confundem na sua natureza. São simultaneamente bons e maus. São um só. São saudade. Chorar de saudades... Que acontecimento tão estranho de se definir. Se calhar não se define. Para quê procurar definir coisas? Qual é a razão da racionalidade excessiva? Frequentemente não acaba em bem.
Sentir saudades é bom. É sinal de que anda por aí alguém que faz outrem sentir a sua falta. Sentir saudades é mau. É sinal de que anda por aí alguém que faz outrem ter pena de não estar perto desse mesmo alguém.

Outubro de 2011.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Valsa de Uma Noite de Verão

Não sou poeta. Nunca o fui nem tão-pouco sê-lo-ei num futuro próximo ou distante. Não sei encaixar numa rigorosa métrica todas as coisas bonitas que ficam bem a alguém apaixonado como eu dizer. Não sei tão-pouco vasculhar no dicionário da minha sabedoria palavras com a mesma terminação do verso anterior que não fiz para espontaneamente poder provocar uma rima cuja sonoridade não vale nada.
Sou daqueles que acreditam mais na demonstração do que no dizer. Prefiro mostrar-te que acordo ao teu lado completamente desperto sem necessidade de aguardar algum tempo até recuperar as acuidades visual e motora depois de ter mergulhado e regressado à superfície do sono que me deixou repousado e em sossego durante mais uma noite em que perto de mim permaneceste. De que me serve olhar lá para fora, através do vidro da janela que os raios de sol beijam de compasso em compasso à medida que lá no horizonte a estrela vai fazendo a sua escalada habitual até ao céu, para te falar de coisas tão disparatadas como a inveja que as flores dos campos sentem ao ver-te passar de vestido primaveril como se tu própria fosses a flor mais bela de um jardim que não possuo?
Ah!, como te quero abraçada a mim em toda a duração dos dias de Verão e do resto do tempo, para que possa sentir-te, mais do que como minha adorada, minha somente, porque embora este seja um determinante possessivo que até pode dar uma ideia errada de mim como pessoa possessiva, não o sou, descansa, simplesmente sinto-me recheado na totalidade do meu corpo e da minha alma por saber que só a mim pertences e a mais ninguém, que só comigo partilhas o teu coração, cujo sangue quente sinto ser bombeado quando te encostas a mim, pele nua sobre pele nua, numa união que agradeço a uma graça divina que, ó sacrilégio maior!, considero estar bem abaixo do que a tua essência representa para mim.
Vem, dá-me a mão e segue-me no épico das nossas vidas, correndo que nem duas crianças tolas que ignoram tudo o que de mau há no mundo e que nos aflige e apoquenta. Não importa que a imagem de um par como nós a rolar pelos campos sob a égide do Sol seja uma coisa já mais do que vista e até enjoativa para alguns, alguns esses que poderão ser cépticos e não acreditam no amor ou então alguns esses que poderão estar já tão marcados pela canção do infortúnio que não têm coragem de se aventurar em algo de novo que lhes traga a esperança que há muito perderam e receiam vir a recuperar, sob pena de ser maior a queda de um pedestal que pretendem almejar e não conseguem. Mas essas questões a mim não preocupam. Quero-te nua sob a lua, quero-me teu vassalo, para que só a ti responda e esqueça tudo o resto. Lembras-te de quando te falo baixinho ao ouvido, num sussurro, mesmo, e te digo para esqueceres tudo e aproveitares o momento? O momento é agora. Não é mais logo, não é daqui a pouco, não foi ontem, mas sempre no presente, cuja construção depende única e exclusivamente de nós, que fugimos ao mundo. Bem que podem procurar por nós, mas bem podem também ter a certeza de que não nos encontrarão. Não somos seres físicos. Não somos dois, sequer. Somos um só e por isso mesmo como uma essência, uma alma, o que lhe quiserem chamar. Por favor, peço-te que me pares, caso esteja a levar-te à exaustão com estas palavras que não queria ter pronunciado, porque, como te disse, se é para falar ou escrever coisas bonitas e apetecíveis ao ouvido, então que venha alguém de fora e que imagine uma sua história a quem contar ou dar a ler, porque nós não temos nada para revelar ao mundo nem eu tenho capacidade suficiente para escrever semelhante coisa.
Sinto-me como um daqueles adolescentes de sorriso de esgar e de olhos muito grandes e fixos numa figura que os chamou a atenção e que ainda procuram perceber de quem se trata, qual a sua aparência, mas não só a exterior, porque essa é visível a todos, mesmo que os olhos do adolescente venham a ver a figura de um outro prisma que mais ninguém consegue adoptar. Eu, assim jovem como me descrevo, procuro saber o que escondes, que segredos guardas, procuro fazer-te um qualquer sinal que te faça olhar para mim no meio da multidão. Tento sorrateiramente destacar-me, mas acabo por não conseguir sair do sítio quando te percebo a mais formosa das que te rodeiam. E eis que um curto olhar de passagem daqueles de quem olha mas não vê surge. Rapidamente voltas atrás na tua passagem para te focares em algo ou alguém que te fez despertar. O que se passa? É a mim que vês? Consegui passar a mensagem? Não... Foi alguém conhecido que encontraste. Talvez alguém mais vistoso do que eu. Talvez um amor antigo. Talvez uma situação constrangedora. Pronto. Aí surge o meu desespero e a minha desilusão. Gostava de poder dizer que não estava de todo iludido, a fim de não poder de maneira nenhuma desiludir-me, mas não é isso que acontece. Estou prestes a rodar sobre os meus calcanhares em passo de vencido pelas circunstâncias e pelas errâncias do caminho, quando sinto uma leve brisa na nuca e um suave toque de delicadas mãos que parece atravessar-me o vestuário para directamente incidir sobre a minha pele, pele que há muito esperava o teu toque, os teus lábios, o teu sopro primaveril. Juro que quase derreti de suores frios quando senti qualquer coisa. Uma vez mais rodei sobre os calcanhares, mas não em passo de vencido, seja esse passo lá como for, que descrevê-lo em vocábulos não sei.
Aqui estás tu. Dignaste-me com a tua travessia por entre as brumas dos diferentes olhares que à distância te cobiçavam para chegares até mim. Sou daqueles que dá uma certa pena que ninguém gosta de testemunhar, por ser ainda mais penoso. Quero dizer que me considero um subterfúgio social tão grande que mal posso acreditar no facto de estares à minha frente. Não sei sequer se se trata de um facto, mero acaso, esperança para durar ou fruto do momento que não ficará por aí até ser colhido e avidamente trincado. Mas a verdade é que vieste.
Porque me olhas assim, com esses grandes olhos que com o brilho da noite se assemelham a pedras preciosas? Porque me sinto assim encandeado? Creio que à distância sentia-me seguro o suficiente para quase te lançar um olhar directo que te trespassasse o corpo, mas agora que te tenho tão perto, não sei o que fazer. É a minha reacção de marca, diga-se. Que faço agora, penso sempre para mim. Quedo-me quieto, à espera que as ampulhetas deixem roçar nos seus corpos finos, delicados e formosos mais um grão de areia, que no tempo real cai com uma velocidade extraordinária e no meu tempo parece uma eternidade. Que isso me aflija, não aflige. De todo. É certo que estou a engolir em seco, mas não quero desviar o meu olhar do teu. Noites assim é que são perfeitas. Não as creio ideais. Creio-as reais dentro da minha imaginação. E podem dizer que é a mesma coisa, só que com os termos invertidos, que eu não vou nesse género de conversas. Se na realidade não puder viver os belos cenários que pinto tendo como paleta o meu próprio arco-íris e como tela o meu mundo, então faço-o na minha cabeça, sendo esta influenciada por um coração melancólico que nesse estado consegue a melhor das inspirações.
Começa a sinfonia dos vidros que roçam uns nos outros, as facas e garfos que ficaram abandonados nos pratos cuja vibração ainda os faz tinir, as cadeiras que são arrastadas para trás numa incrível falta de delicadeza, os passos dos restantes intervenientes e as caudas dos vestidos que vão varrendo o chão da pista brilhante. Que poético da nossa parte termo-nos poupado a semelhantes ruídos.
Sim, parece que já estavas a antecipar o momento e quedaste-te junto a mim para darmos início ao êxtase nocturno daquela noite de extremo calor. O que é mais incrível é que ninguém nos viu. Desaparecemos como que feitos pó no ar. Ou foi um sonho ou... Não sei. Visto um misto de cores de origem incerta e ainda fiquei surdo de ínfimos estímulos sonoros, acompanhados de odores afrodisíacos que me deixaram arrumado para o resto da noite, que já não era noite, mas sim dia. Foi então que acordei e levei-te lá para fora agarrada a mim, como te encontrara a meu lado no momento do despertar. Senti-me como a pessoa mais feliz do mundo depois de me teres dado a tua mão nesta tão tua e única valsa.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Desahogo

Esta questão tem vindo a incomodar-me há pouco menos de uma semana. E como não posso falar abertamente sobre isto com ninguém, tenho de escrevê-lo, ainda que sem começar com «querido diário». Ainda tenho respeito por mim próprio.
Li há uns quantos dias, num local concreto, embora sem deliberadamente mencioná-lo, qualquer coisa como ser um problema ficar preso ao passado. Não significa necessariamente que este passado tenha de ser partilhado com alguém que desejaríamos ter por perto. Trata-se também de habitarmos o nosso eu em liberdade. Este direito inalienável e incondicional não deve ser impeditivo da sensação de se pertencer a alguém. Creio que é uma óptima e saudável forma de se estar preso, mas nunca no mau sentido, até porque fazer parte de outrem pode ser ainda mais libertador do que percorrer um determinado troço a sós, especialmente o caminho da vida.
Para uma pessoa da minha idade, falar em vida ao mesmo nível de um sábio ancião pode tornar-se em algo sensaborão, senão ridículo. Simultaneamente, sei que já vivi muito. Este é um advérbio quantitativo, porque ilustra uma imensa quantidade de eventos que já atravessei, ainda que o período de tempo seja bastante curto. Há épocas assim, na nossa vida. Um ano inteiro e talvez um pouco mais do seguinte durante o qual há que tomar decisões preponderantes que, esperançosamente, definirão um novo rumo no que à viagem ao centro do próprio diz respeito.
Existem variadíssimas escolhas que podemos colocar em prática para melhorarmos o percurso. Deambulamos de pés desnudos sobre o solo da Floresta Negra, agreste, bicudo, escorregadio, rochoso e inclusivamente fatal, se não pudermos enlaçar a mão na do outro, que, quem sabe, faria ideia de levar-nos a passear sobre a areia húmida da brisa nocturna, lá onde o mar vem encontrar-se com a costa, perpetuamente banhando-a, inúmeras vezes seguidas.
A dita frase, acima mencionada e que fui buscar à autoria de outrem, metamorfoseando-a com recurso a vocábulos meus, tem vindo a inspirar-me nos últimos dias. Não me recordo da data concreta em que com ela me deparei, mas o factor temporal não é relevante neste momento. Em procurando fazer bem e ainda que estando de consciência tranquila, errei. Quero dizer que sei que o que fiz não foi por mal, mas também não resultou em bem. Da outra parte, fui iluminado com duras palavras sobre a repercussão dos meus actos. Sim, foram expressões duras. Frias, também. Mas não me sinto ofendido, a culpa foi minha, fiz por merecê-las. Não me parece que tenha pisado o risco. Mais do que isso, transpus o limite por completo. Argumentei que a reacção me provocava lamentação, o que é verdade. Mas expliquei também que não era no clássico sentido de como quem diz «tenho pena, eu expliquei-me perfeitamente, quem te disse que era assim que devias ter interpretado o significado das minhas palavras, de modo tão negativo e desrespeitoso?». Porque não é um problema de interpretação, mas sim de expressão. Analogia teatral, o público tem de entender a expressão do actor, mas se este não se exprime com clareza, a responsabilidade e assumpção das consequências que daí decorrerem são inteiramente dele.
Foi assim que, embebida na verdade, devolvi a minha resposta, clarificando que era comigo próprio que agora experimentava uma sensação de tristeza. Aproximei-me erradamente. Não lhe peguei na mão, mas antes no braço, com ignorância completa pela antiga expressão artística de que, por vezes, «menos é mais». Pensando no que fiz, mais foi mais, só que inteiramente dirigido para uma conotação negativa, senão péssima.
Efectivamente, não nos conhecemos bem. Sabemos coisas muito básicas, um sobre o outro. Mas não foi isso que me impediu de me aproximar. Eu sabia que tinha de dar o primeiro passo para essa primordial troca de palavras, infelizmente interrompida abruptamente por motivos alheios a ambos. Ter-me-ia arrependido para todo o sempre, se ainda hoje não tivesse digitado um «Olá!», simples na forma, pleno no significado.
Eu, que creio sentir-me justamente orgulhoso de saber articular as palavras, mencionando frequentemente termos próprios dos textos clássicos, não soube refrear o ímpeto, para mal dos meus pecados. Não calei a língua em silêncio ou, no caso, os dedos em movimento. Os vocábulos que trespassaram a barreira dos meus dentes ou, no caso, os caracteres que evadiram as pontas dos meus róseos dígitos, não se contiveram, tal foi (ou continua a ser) o meu deslumbramento por aquela adorável visão.
A despedida não foi menos gélida. Demasiado definitiva, e por isso preocupante. Como uma estaca que me penetrou o coração e assim o deixou, rasgado bem no centro, embora congelado, mantendo-o vivo no interior deste entristecedor glaciar, subtilmente bombeando.
Pedi perdão, mas reinou o silêncio. Faz-nos bem não falar demasiado, é o que nos custa entender, na maior parte do nosso tempo. As feridas precisam disso mesmo, de tempo, para sararem. Por muito que eu goste de ser doce, pede-se espaço e um pouco de ar fresco para ajudar ao fecho do golpe infligido.
Se uma estrela dos desejos tiver de surgir no céu escurecido, lá no alto da cúpula celestial, farei de imediato o meu pedido: «não te despeças de mim tão cedo; ainda nem sequer me apresentei».

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Ode à Fraternidade

Amigos, pegai ora em vossas taças,
É chegada a hora de celebrar;
Batei umas nas outras em crescendo,
Para que esta sinfonia as devassas
Querelas oculte em diminuendo.
Largai armas, sobreponde dif'renças,
E a um dar de mãos dai o lugar.
O ódio que em vossas veias correu
Poluiu o frágil meio-ambiente
Que rui insuflado de desavenças
Espirituais, manchando de sangue o céu.
Respirai as notas da harmonia
Que a Lua oferece em respeito ao Sol!
É, pois, com dignidade e cortesia
Que vivereis em pleno vossas vidas,
Sob a égide da fraternidade.
Ah!, não deixeis vosso espírito mole!
Cantai em uníssono «igualdade»!
Sejamos irmãos e irmãs queridas.
Deixai vossa crença em dogma diverso
Não aludir a violência incutida
Por uma vã força superior
Sobre a qual a discórdia é a rainha.
Crede na potestade do universo,
Religião humana e ult'rior.
A pena que agora dança em mão minha
Desenha os traços de uma melodia
Que é comum a todos os animais.
Segui o conselho da noite e dia
E evitai do Inferno o arrais,
P'ra que não chegueis em demora ou pressa
Ao falso virtuoso e negro cais.
Amigos, enlaçai as vossas mãos,
Transmiti do círculo a energia,
Preparai-vos p'ra tocar esta peça.
Vá, dai à Natureza a primazia,
Cuidai de vossos corações, são sãos.
E ponde de lado o interpretar,
Deixai vossos oculares bem quedos,
Não tenteis fazer de vós tribunal.
A outros permiti o julgamento.
Não é vossa função mirar, julgar.
Que o façam as 'strelas no firmamento.
Olhai entre vós, de igual p'ra igual.
Trauteai esta ária apaixonante
De vossa cumplicidade eloquente.
Largai vosso desejo comedido
E alargai numa só voz troante
O vosso mesquinho orgulho ferido
De péssimo carácter displicente
Para uma canção universal.
Tendes a beberagem da alegria
Em vossa doce, sã, humilde posse.
Insistir na briga é fraca mania,
É perder sorriso em lugar da tosse.
Para quê ignorar um vero amigo,
Qual a razão do olhar distorcido?
Sois todos vós comigo e eu contigo,
De vãs não são minhas letras seladas.
Agarro-te no salto à confiança;
Quanto a vós, de minha mão não largueis.
Perscrutai as s'mibreves prolongadas,
São provindas do sopro de esperança
De minha garganta grã como seis!
Prom'tei-me só isto, ó companheiros:
Olhareis por mim em dia aflitivo,
Que em troca farei o mesmo por vós.
Gritaremos, sim!, o tom decisivo
Que reconhece em pleno a amizade
Dos que são p'ra sempre juntos, não sós.
Envelheceremos juntos d'idade,
Cansaremos de risos nossa voz.
Até sempre, ó meus «camaradeiros»...
Irmãos de armas, de vida e de sangue,
Canto-o eu não em esprito ligeiro,
Não em funesta superficialidade,
E não como um pérfido zombeteiro,
Mas com honestidade de alma exangue.

Canção do Infortúnio

(A propósito de D. Quixote de la Mancha)

Ah, falar sobre o Amor...
É tão somente um enjoo
Comum aos que em alto voo
Sentem um ardente ardor
Provocado pelas damas
Cuja formosura fama
Lhes traz, de grande valor.

Só que p'rós enamorados
Torna-se inevitável,
Pois, que o seu fluido inflamável
Dessa paixão seja ateado,
Assim que pelas miradas
Passam as suas amadas
De gesto mui adornado.

Talvez como que uma bênção,
Privilégio ult'rior
Ou de graça sup'rior,
São só elas que os adensam
E os deixam feitos fogo
Neste mui ingrato jogo
Que eles jogam mas não pensam.

É de por certo pasmar
Como de um curto disparo
Do seu muito longo aro
Consegue em cheio acertar
Nos corações destemidos
Daqueles jovens garridos
Cupido de pele alvar.

Quando este evento acontece,
Podemos ter a certeza
Que das damas a pureza
Quando por fim anoitece
Sonham os jovens manchar,
Sob o reino do luar
Que os corrompe e enlouquece.

Mau fado, o dos rapazes
Que esquecem seus afazeres
E se perdem em dizeres
Que enfim planeiam capazes
De atingir a emoção
De moças de cortesão
Indignas de seus cabazes.

Pois tantas são as histórias
De mancebos infelizes
Que não querem meretrizes,
Mas princesas de alta glória
A quem dedicar poemas
De luminescentes temas
Dominantes da memória.

Elas, com a formosura
De que tanto são prendadas,
E por isso amaldiçoadas,
Com falta de compostura
Ignoram abertamente
Ou deliberadamente
Tentativas de candura.

Como jóias do oceano,
Fala-se-lhes em seus olhos
E seus singulares molhos
De cabelos no mundano
Que em acertado momento
Nos traz seu odor o vento
De personagem humano.

Não fique esquecida a boca
Em que mergulhar queremos
Nem o corpo que seremos
Quando em união mui louca
Nos transformarmos num só,
Até que sejamos pó
De ossos e de carne pouca.

Mas de que vale tão forte,
Grã sentimento nutrir,
Se nunca nos faz sorrir
E provoca grande corte
Ao tão frágil coração
Que logo, já de antemão
Para isto não tem porte?

Lancemo-nos à fogueira,
Pois que outro remédio há?
Andamos de cá p'ra lá,
Perdemos as estribeiras.
Condenados ao destino
E fruto do desatino
Deixámos nossa primeira!

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Beijo Universal

Cala-te. Pára de falar. Não digas mais. Estás a articular demasiado. Refreia o teu processo cognitivo. Não lhe dês desculpas para continuar a arranjar desculpas.
Olha-me nos olhos. O que vês? Tens vontade de argumentar? Ainda queres discutir? Sob que pretexto? Sob que subterfúgio? Sob que sob subterrâneo? Não vale a pena continuar. A realidade não se traduz só em palavras secas, simultaneamente túmidas de jargão orgulhoso. Chega. Basta. Já chega que baste.
Mira os meus lábios. Tem-nos na mira, porque não os miras de facto? Ou porque não os miras na tua mira e na tua mirada de jure? Esquece os factos. Não racionalizes. É de facto desnecessário que me mires através de uma mira factual. Não será o coração um comboio de corda que corda não teve para continuar a bombear o meu sangue arterial, em detrimento do sangue venoso, tão venenoso? Acorda, se sabes que a corda o comboio não teve. Palpita-me que não terás palpitado o suficiente nas últimas e indefinidas unidades de tempo que não precisarei por não precisar.
Sabes quem eu sou, sabes a que saibo, sabes que saibo bem, tal como sei que tu sabes que sabes bem quando degusto os teus lábios de musa, nunca de medusa.
Beija-me, por tudo quanto possuis, possui-me de uma maneira que mais ninguém conseguirá maneirar, percorre-me o dorso com os teus lábios carnudos e ardentes, pontua-me com pontos finais mas não terminais o meu corpo. Bombeia o teu sangue sobre mim, reveste do teu calor o meu corpo despido que de ti nunca se viu despedido. O meu pescoço está marcado pela tua marca, consumiste-me delicadamente como a uma extravagante delícia. Anda, vem, liga os teus lábios com os meus, dá-me a saborear a tua língua, enlaça-te a mim no ardente beijo em que o fogo desta paixão não se apagou.
Agarra-me, prova-me, põe-me à prova, dá-te a provar. O teu corpo desliza sobre o meu num atrito incandescente, ardente, mas não insuportável. Suporto eu o teu peso-pluma sobre mim, apodero-me e aproprio-me de ti, a mais ninguém pertence a essência que vive em ti e que em mim vive, vivendo e fazendo-nos viver, a ambos, aos dois, como a um só.
Por que esperas? Devora-me, se é esse o dever que deves empreender, prendendo-me a ti, ao teu corpo e a nenhum outro, aos teus lábios perfeitos que aos meus se unem como uno, um só.
É ao meu beijo que queres, é o meu beijo o teu desejo, é o meu beijo o teu ensejo, e nenhum outro como o meu é tão inflamável, tão loucamente louco, tresloucado. A banda sonora aí vem, já importada.

História de Embalar

Era uma vez uma pequena casa junto do mar.
A casa, para além de ser pequena, era pintada de branco como a cal, e a brisa marítima fizera-lhe o favor de a deixar ainda mais branca, ao contrário do que seria de se pensar do efeito de erosão que o sal tem, levado ao colo pelo sopro do vento. Na sua fachada, cuja direcção se opunha ao sentido das ondas que avidamente rebentavam contra a sua cara-metade arenosa, havia quatro janelas, duas de cada lado de uma porta. Tanto a porta como as suas primas afastadas, as janelas, estavam pintadas de azul, lembrando uma vila de pescadores que não distava em muito desta casa. Cada uma das janelas tinha quatro vidros, separados por uma cruz de madeira. Pendurado na porta estava um batente que as visitas deveriam utilizar para avisar que era pacientemente aguardada a sua recepção. As telhas eram vermelhas e estavam todas muito bem alinhadas, sem necessidade de uma reparação para um tempo próximo.
Ora, dentro da casa vivia um menino. Por estranho que pareça, vivia sozinho, não tinha mais ninguém que o acompanhasse no seu crescimento saudável, porque a sua família era de pescadores e, infelizmente, todos haviam já desaparecido em momentos diferentes em que o mar se mostrara muito maldisposto, não tendo qualquer sentido de misericórdia ou de compaixão para com uma família que apenas o incomodava para ir buscar o seu sustento, o peixe que se vendia no mercado, na lota, e o peixe que se pescava para cozinhar dentro de casa e assim fazer uma boa refeição.
Pode dizer-se, portanto, que este menino aprendera a viver a sua vida sozinho, longe de figuras principalmente femininas, pois o avô perdera a sua mulher, a avó, ficando encarregada de cuidar do pai, que, por sua vez, ficara encarregada de tomar conta do menino, uma vez que a mãe igualmente desaparecera muito cedo. Era uma sucessão de perdas muito tristes e completamente inapropriadas para crianças pequenas que necessitam, mais do que nunca, em tenra idade, de ambos os pais presentes, de preferência ligados um ao outro sem raiva, sem discussões ou sem brigas, todas elas sem sentido e desnecessárias, porque discutir com alguém que amamos, seja por que razão for, nunca fará sentido.
Felizmente para o menino, aprendeu em bom tempo a arte da pesca, para si passada pela sua ascendência, sabendo assim interpretar a direcção do vento, os redemoinhos de nuvens que acabavam sempre em tempestades perigosas que exaltavam os ânimos do mar, de temperamento muito inconstante, sabia os sítios certos onde lançar as redes e não precisava de bússola para se orientar na partida ou no regresso, porque o Sol fazia-lhe o favor de indicar com os seus dedos raiados o caminho de regresso a casa, aquela casa modesta que se destacava de todo aquele areal, tanto da preia-mar como da maré baixa, tanto das colinas de areia como das falésias de aspecto hediondo e pontiagudo mas que na verdade não faziam mal a ninguém.
O peixe era a sua sopa dos pobres, era o seu sustento natural garantido que as águas salgadas sempre tinham prontas a oferecer. E mesmo que determinada espécie de pescado partisse para outras águas a fim de desovar e, consequentemente, reproduzir-se, outras haveria que por ali parassem, estando dispostas a dar a sua vida pela continuidade da vida do menino, que, por ele, não desejaria roubar a vivência a ninguém para seu próprio proveito. Mas a lei da Natureza é assim mesmo, existe uma cadeia alimentar, e os predadores vão-se amontoando uns em cima dos outros, cada um maior do que o outro, com bocarras ainda mais abertas e presas ainda mais afiadas do que o anterior, para que haja sempre uma ideia de proporção. Nesta situação, o menino ultrapassava em tamanho o peixe que caçava, por isso tinha mesmo de ser assim.
Como era tão novinho, sem que se saiba precisar a sua idade, o menino não fazia da pesca o seu negócio. Pescava porque tinha de comer, e era assim que se sentia bem. Não havia preocupação em ganhar dinheiro porque tinha já em casa tudo aquilo de que precisava. E quando não tinha, as varinas que vendiam na lota o trabalho árduo dos seus maridos perguntavam sempre se lhe faltava alguma coisa, porque não queriam que ele passasse mal. Por isso é que, sempre que não houvesse mais azeite, quer para temperar o peixe, quer para acender as lamparinas de casa, as senhoras prontamente lho ofereciam. E preparavam-se também para lhe coser as roupas simples que envergava todos os dias e que ao fim de um certo tempo começavam a dar de si, trespassando livremente o sal os seus tecidos.
Não se pode dizer, portanto, que o menino não estivesse constantemente sob os cuidados próximos e interessados das outras pessoas que viviam em casas acima da sua própria, mas que as falésias não deixavam ver por estarem rabugentas o tempo todo, tapando a vista a qualquer um que estivesse ao nível da casa do menino.
A casa, como já se percebeu, passara de geração em geração até chegar a si, e ao longo de todos esses anos permanecera intacta e intocada pela força da água salgada, que nunca ousara aproximar-se, sob pena de também nunca mais ser visitada pelo menino e pela sua pequena embarcação à vela, na qual seguia em busca do seu alimento. A água tem vida, como tudo neste mundo, e se o menino alguma vez a deixasse, sentir-se-ia certamente muito triste, e talvez por isso desse largas às braçadas com que envolve a areia numa aparente violência extrema, mas que verdade se poderia considerar como uma birra, tal como aquelas que dão aos meninos e meninas pequenos, quando têm sono e só querem dormir.
De viver tanto tempo sozinho e esporadicamente, que é como quem diz de vez em quando, estar ao cuidado das varinas no que diz respeito a recados pontuais que elas viam como necessitados de serem cumpridos, o menino habituara-se à solitude. É preciso dizer que solitude não é o mesmo que solidão, ou seja, a primeira tem a ver com estar sozinho e não sentir mal nenhum em assim permanecer, porque acaba por se transformar num estilo de vida como outro qualquer, enquanto a segunda tem a ver com estar sozinho sem que isso se deseje, encontrando-se submerso na tristeza que é não conviver com absolutamente ninguém e ter o desejo de estar entre outras pessoas. Também pode acontecer que, ainda no que diz respeito à solidão, se queira estar sozinho, sem mais ninguém à volta, com medo de provocar em si próprio uma certa culpabilidade, um sentimento de não querer importunar ninguém com a sua presença. Mas toda a gente sabe que ninguém precisa de se sentir assim e que todas as pessoas do mundo, mesmo aquelas que tenham um feitio mais duro, estão sempre disponíveis para dar a mão, seja em que situação for, porque o caminho para o bem-estar e para a felicidade universal não se faz sozinho. É preciso dar a mão primeiro, para que depois esta seja agarrada por outra.
No caso do menino, não havia solidão, havia solitude. Nunca se habituara a conviver muito com outras pessoas a não ser a própria família, que, para seu triste destino, acabaria evaporada nas águas gélidas do mar alto. E assim passava os seus dias, indo de manhã cedo para o alto mar de redes vazias, para voltar depois ao final da tarde com as mesmas cheias de vívido peixe, alguns ainda a dar às barbatanas, sufocando naquele que é o nosso único combustível de sobrevivência, o ar. É surpreendente como algumas criaturas vivem de modo tão contrário ao dos humanos. Vai na volta, se calhar é assim que se sentem mais felizes. Mas não vale a pena engrenar um discurso derrotista, porque acima do nível das águas do mar as pessoas também sabem viver bem.
O menino tinha prazer em ir pescar. Era a única coisa que fazia e corria com um gosto e uma vontade tão grandes que nem sequer pensava em parar para descansar. O conceito de fim-de-semana era algo ao qual se mostrava absorto, distraído, por assim dizer. Mas havia alturas em que era necessário parar, por isso guardava um pouco mais de peixe nessas ocasiões e conservava-o em gelo trazido pelas varinas da lota, para que a sua frescura não ficasse comprometida. Nessas alturas, dava atenção a outras coisas, como a própria casa. De pinturas não precisava, porque no Verão passado tratara disso e o estuque mostrava-se impecável. As telhas não deixavam passar água que fosse preciso amparar no interior das divisões com baldes. As janelas estavam longe de estarem lascadas e de mostrarem necessidade de atenção. Tanto as janelas como as portas haviam sido talhadas à medida para que, chegado o mau tempo, não inchassem com a humidade a ponto de rebentarem umas com as outras.
Que bem que ficava aquela porta azul-mar no seio da ombreira grossa que a rodeava.
Tal como convinha que o aspecto exterior da casa estivesse apropriado aos olhos de quem quer que a visse, embora esta não fosse uma preocupação tida em conta pelo menino, também o interior necessitava de cuidado. Por isso o menino pegava nos seus instrumentos de limpeza e fazia a lida da casa. Não está errado dizer-se instrumentos, porque também as vassouras, as pás, as esfregonas, os baldes produzem sons harmoniosos em contacto com as superfícies que acariciam. É como se se tratasse de uma orquestra sinfónica caseira de um único espectador e, ao mesmo tempo, tocador. Provavelmente estes instrumentos sentiam alguma inveja do búzio que estava pendurado atrás da porta da entrada e que naturalmente produzia música, sem precisar de estar em contacto com mais nada. O menino muitas vezes pegara no búzio para ouvir como estaria o mar em determinado dia. Era como se pudessem ler os pensamentos mútuos, um do outro, fazendo um a pergunta e dando outro a resposta através da sua simples mas bela sonoridade.
Ao final destes dias, o menino parecia sentir-se cansado, sentimento esse que não experimentava nos outros dias em que partia rumo ao mar para poder comer no final desses mesmos dias.
Uma vez, resolveu não fazer, nem uma coisa, nem outra. Não foi pescar, mas também não deu atenção à casa. Isto porque o búzio avisara-o na noite anterior de que uma tempestade estaria lentamente a formar-se lá em cima, onde os anjos caminham sobre as nuvens. E a confirmação surgira realmente.
O mar estava demasiado revoltado e mal-humorado, pelo que tentar ir falar com ele e chamá-lo à razão seria um gesto muito mal pensado. O menino aprendera já: se ele não quer ouvir ninguém e está chateado, então é deixá-lo estar, não fosse ele alguma vez virar-se contra o menino, que tão seu amigo era.
Também o céu não estava para brincadeiras, por isso se uniram ambos. O céu pingava e o mar recebia mais umas gotas a juntar à sua imensidão, como se não tivesse já pouca água com que se contentar, a ele e a todos os que viviam no seu interior, especialmente os peixes. Lá longe, onde o céu parece beijar o mar, acariciando-o com as suas suaves mãos, tão suaves que parece que não se sentem tocar-nos, a vista não era agradável. Não tinha a cor do costume, nem deixava ver o arco-íris, quando o Sol se escondia atrás de umas gotinhas de chuva e projectava os seus longos braços raiados, braços esses que tinham por hábito despertarem o menino para a sua rotina incansável. Não, desta vez não havia cores, não havia Sol, não havia nada, só água, muita água e, acima de tudo, gelada.
Não deixava de ser agradável, contudo, em dias assim, ouvir essas mesmas gotículas da chuva baterem contra as janelas da casinha do menino, iluminada no seu interior pelas candeias que simultaneamente irradiavam luz e calor. Era como se essas gotinhas de chuva tivessem frio de si próprias e quisessem buscar o calor das lamparinas que se encontravam suspensas do tecto. A casinha era toda ela forrada de madeira no seu interior, tanto assim é que seria um perigo ter uma lareira para gerar aquecimento. Por isso, aqueles pequenos pirilampos que se alimentavam em azeite teriam de ser o suficiente.
Neste dia, que se tornava num hábito à conta de se ter já estabelecido uma rotina, que era a rotina dos dias chuvosos, algo de diferente viria a mudar a perspectiva do menino em relação ao seu modo de vida em geral. Não que ele pensasse num modo de vida. Simplesmente vivia. Não lhe interessava pensar muito na filosofia que a vida tem para oferecer. Aliás, soubesse ele o que é filosofia e de certeza condená-la-ia ao mau humor do mar, suportado pelo mau humor do céu. Pensar muito não leva a nada. O menino era isso mesmo, um menino. Não tinha ele qualquer interesse em pensar demasiado. Todos os meninos e meninas tinham horror a ser adultos, porque sabiam que mais cedo ou mais tarde iriam começar a pensar e a ganhar responsabilidades que teriam de obrigatoriamente cumprir. Mas o menino não pensava assim.
Responsabilidades já ele as tinha, mesmo que não as visse dessa maneira. E sem pensar muito ia vivendo a vida. Ou melhor, vivendo. A vida que se vivesse a ela mesma. Cada qual com a sua mania.
Por simples curiosidade, sem querer saber concretamente como estaria o estado do tempo para o dia seguinte, o menino levantou-se da sua cama de rede, que o satisfazia melhor no sono e no conforto do que uma cama regular, e pegou no búzio que ficava sempre pendurado por detrás da porta da entrada.
Assim que o encostou rente ao ouvido, ouviu um som muito estranho, pouco habitual nas escutas que fazia do búzio nos outros dias. Era um som estridente, agudo. Um grito. O impacto da estridência, da agudeza do som, fez com que afastasse o búzio do ouvido, de forma a não ferir o tímpano. Mas depois voltou a colocá-lo rente e confirmou aquela aflição. Era realmente um grito provindo do seio das águas enfurecidas do mar. O menino voltou então a colocar o búzio no prego onde costuma repousar e espreitou à janela. Tentou ver mais longe, mas a chuva esborratava os vidros como batom líquido e não deixava ver nada. Se as presilhas das janelas não fossem fortes e não estivessem bem conservadas, depressa se abririam, não de par em par, como é costume, mas de rompante, de uma vez só.
Foi então que viu ao longe algo que se destacava do cinzento escurecido das ondas que discutiam entre si, para ver qual delas conseguia ser a maior. Viu uma cor alegre, no meio de toda aquela neutralidade, daquela paleta de uma cor só. Viu um toque de vermelho vivo, cuja vida se encontrava agora a ser lentamente sufocada pelo cinzento das águas. Era alguém que estava em apuros, alguém que, se não fosse rapidamente salvo, não voltaria a ver o Sol raiar para si uma vez mais. Nesse momento, a solitude ficou de lado e o instinto de salvação do menino tomou o seu lugar. Abriu a porta de casa de uma só vez e saiu disparado, mais rápido que o próprio vento, que soprava muito e com muita rapidez. Sem ter em mente que a temperatura que trazia do interior de casa poderia entrar num choque perigoso com a temperatura gélida das águas do mar, atirou-se e mergulhou, batendo com todas as suas forças mãos e pés, provocando ainda maior reboliço, maior confusão, do que aquela que a agitação da água por si só produzia. Não via nada à frente, por isso procurou, enquanto ele próprio esbracejava, aquele tom de vermelho que fazia destoar o resto do cenário. Ora o via um pouco mais à esquerda, ora o via um pouco mais à direita. O som do relampejar, da trovoada, ao longe, dificultava a audição dos gritos de quem quer que estivesse ali quase a afogar-se. Mas esses mesmos gritos continuavam. Só paravam às vezes porque a pessoa que ali estava lutava para não se deixar engolir pelas ondas e para não engolir ela própria mais sorvos, mais goles de água salgada. Por isso os gritos eram interrompidos por uma tosse natural que expelia o salgado daquele mar outrora bem-disposto, que não ameaçava ninguém. Mas quando lhe dava para seu mau, nada mais havia a fazer. Foi exactamente por ter sido provocado de mau humor que, tanto o avô como o pai do menino haviam desaparecido, deles nunca se sabendo nada mais, encontrando a sua sepultura no seio das águas.
Depois de alguns minutos à deriva, com as forças de braços e pernas praticamente esgotadas, o menino conseguiu acercar-se de quem mais ali estava. E colocando o braço livre à sua volta, com o outro procurou lutar contra a força do ondular, mas era difícil conseguir avanços. Então, num rompante, deu tudo por tudo antes que lhe surgissem cãibras, e nadou com toda a força da sua meninice em direcção à praia. As lamparinas que haviam ficado acesas com a saída abrupta do menino em direcção ao mar revoltoso serviam de farol para orientar a sua chegada.
Minutos depois, que quase pareceram uma eternidade, davam ambos, o menino e o vulto vermelho resgatado, à costa. Durante toda esta parafernália, que é como quem diz confusão, a pessoa que o menino salvara perdera os sentidos. Mas quando finalmente ganhou pé, não se preocupou em saber de quem se tratava, não lhe viu sequer o rosto. Não valia a pena, de qualquer das formas, uma vez que o temporal só trazia escuridão e pouca ou nenhuma luminosidade.
Arrastou consigo o peso morto do náufrago até dentro e fechou a porta com um pontapé, deixando-a bem cerrada. Por muito que o vento soprasse, não conseguiria abri-la, de tão bem trancada com força que estava. O menino deixou o corpo inerte, mole, estendido no chão e pegou em todas as lamparinas que havia, estivessem a ser usadas ou não, para as acender a todas como se de uma enorme fogueira se tratasse, para aquecer aquele corpo estendido.
O vermelho que vira ao longe era na verdade um quispo, que estava obviamente ensopado. Ao tirá-lo, com o máximo cuidado que podia ter, viu então de quem se tratava. Não soube quem era, mas soube o que era, se assim pode dizer-se. Era uma menina. Uma menina que não poderia ser mais bonita do que já era, de tão perfeita que se fazia. O menino colocou o quispo de lado e muito delicadamente, com as suas mãos suaves, apesar do ofício que tinha, ajustou o rosto da menina à luz das lamparinas. Os seus cabelos eram longos e tinham uma essência a mar, naturalmente, pois ali ficara algum tempo até ser resgatada. Eram loiros e serviam, naquele momento, de espelho aos pirilampos que a rodeavam para a aquecer. Pareciam fios de ouro finamente talhados, mas de ouro puro e genuíno. As suas maçãs-do-rosto estavam visivelmente enrubescidas, avermelhadas, com a afluência de sangue que percorria todo o seu corpo como agente natural de aquecimento. Eram também bastante proeminentes, e isso de certeza que se veria num sorriso de orelha a orelha. O seu nariz era redondinho na ponta, enquadrava-se perfeitamente em toda a composição do seu rosto. Sim, composição é a palavra certa. Especialmente no sentido musical. O rosto daquela menina era perfeito como uma melódica sinfonia, pois a par da melodia está a harmonia, e isso não faltava. Num gesto impulsivo, o menino procurou forçar, mas sempre com muito jeitinho, uma das pálpebras da menina, para que pudesse ver a cor dos seus olhos. Àquela luz, poder-se-ia dizer que o menino encontrara uma jóia preciosa, nomeadamente uma esmeralda, uma vez que os olhos daquela menina eram verdes em tom de mar calmo e apaziguado, mas de um brilho de pedra preciosa. Nunca o menino testemunhara semelhante beleza numa só pessoa.
Encantado com aqueles olhos, que apesar do brilho que ostentavam, pareciam sem vida, o menino não queria voltar a cerrar as pálpebras da menina, porque entretanto abrira também a outra. Mas pensou que o seu gesto, por mais inocente que se conservasse, não era o mais apropriado. Por isso deixou que os olhos daquela formidável batalhadora ficassem em repouso durante mais um tempo. O menino conseguia ver que o seu ventre cumpria o movimento natural da subida e da descida, por isso concluiu que estava a respirar e que a água salgada não teria penetrado os seus jovens e pequenos pulmões.
Para compensar o aquecimento proveniente das lamparinas, o menino foi a correr buscar um cobertor com que cobriu a menina, e esperou. Esperou que houvesse reacção por parte dela. Não queria forçar aquilo que parecia cansaço extremo culminado em sono profundo, por isso ali ficou, junto dela, sentado no chão, à espera de uma reacção que fosse. Não queria, nem arredar pé dali, nem ir dormir. Não tinha sono nenhum, a ansiedade que sofrera ao resgatar a menina que ali estava aos seus pés deitada dominava-o. De qualquer forma, queria estar na sua companhia para que, quando acordasse, não se encontrasse sozinha e com medo de se ter perdido num sítio que nunca antes vira e que não conhecia.
Toda a noite o menino ficara a olhar para a menina. A tempestade, que nessa mesma noite mostrara querer representar o papel de assassina de uma vida inocente, desaparecia agora de fininho, sem deixar rasto, como se nada tivesse acontecido, como se por pouco não tivesse alterado o mundo, privando-o de uma criança tão adorável quanto aquela. E quem diz esta, diz tantas outras mais. O Sol começava a penetrar os rectângulos de vidro das janelas abananadas do vento de furacão e, pé ante pé, foi iluminando os pezinhos da pequena, até que enfim enfeitiçou os seus brilhantes olhos, comandando-os a abrirem-se. Mas com o impacto da luz, que era sempre mais forte nos primeiros raios de carícias solares, a menina não abriu os olhos de uma só vez.
Começaram semicerrados, depois ligeiramente mais abertos, até que se abriram por completo à habituação da claridade, sempre, contudo, numa expressão de extrema serenidade, como se nada se houvesse passado na tenebrosa noite que acabava de dar lugar ao majestoso dia.
Quando se tem aquela sensação de acordar num espaço estranho, a confusão e a surpresa são inevitáveis, demorando o cérebro algum tempo a habituar-se à ideia de que afinal está tudo bem, no seu lugar. Mas a verdade não era essa, desta vez. A menina realmente não reconhecia o espaço envolvente, porque nunca ali estivera. Se a falta de reconhecimento do espaço já é por si mesma terrível de se compreender, quanto não o será ver que está alguém perto de nós, ali tão próximo, como se tivesse o controlo de toda aquela estranha situação. A confusão aumentou, assim, com a presença do menino, que a olhava atentamente, não se tendo atrevido a retirar os olhos do seu rosto durante aquelas horas todas. A garganta da menina não se inibiu, por muita ansiedade que estivesse a sentir, de soltar um pequeno grito de medo.
Felizmente para ambos, as lamparinas já estavam apagadas há muito, por isso já não havia chama no seu pavio, nem óleo que o alimentasse. Felizmente porque o susto que a menina sentira fê-la virar uma das lamparinas que a circundava, partindo-se no chão, já seca. Por pouco não se cortara e por pouco outro dos pirilampos não tivera o mesmo destino de se quebrar no chão, apenas deu umas voltas sobre si e voltou ao lugar.
― Quem és tu? – perguntou a menina, a medo e desconfiada.
― Não tenhas medo! Não quero fazer-te mal... – procurou descansá-la o menino – não te lembras que ontem estavas à deriva, no meio do mar, e quase te afogavas? Eu fui ter contigo e salvei-te.
A menina parecia confusa com o relato. O choque fizera-a agarrar-se ao cobertor que a tapava do frio. Mas a pouco e pouco, começou a recordar o que tinha acontecido na noite anterior.
― Sim... Sim, já me lembro...! Estava a ver que dali não sairia mais, parecia que via o fim à minha frente...
Enquanto pronunciava estas palavras, os seus olhos bailavam de um lado para o outro, como se estivessem a ajudá-la a recordar-se com precisão.
Depois, quando terminou de falar, olhou o menino, desta vez com o olhar de regresso à serenidade, deixando o espanto para trás.
― E tu... – engolia em seco, tentando preparar-se para a articulação a que teria de recorrer para pronunciar as próximas palavras – tu salvaste-me...?
O menino assentiu, com um ligeiro sorriso que lentamente começava a brotar dos seus lábios.
― Sim, salvei-te.
― Mas como é que soubeste que eu estava ali, com a escuridão toda e com o barulho das ondas e do vento?
― Se calhar vais achar um bocadinho estranho, mas eu tenho um búzio – apontou para o instrumento marinho que descansava sobre o prego espetado na porta – que me diz como é que os dias vão estar, para saber se posso ir ou não pescar.
A menina seguiu com o olhar o apontar do indicador de uma das mãos do menino, e quando este terminou de falar, respondeu ela.
― Não, não acho nada estranho. Acho muito engraçado, até. Se não ouvisses o teu búzio todos os dias, não poderias ouvir os sussurros do mar, que de certeza não consegues ouvir tão bem como quando estás ao pé dele, ou mesmo aqui dentro, vendo-o da janela, como acredito que se veja.
― Onde vais? Consegues andar...?
Ambas as perguntas haviam surgido porque a menina, depois de saborear durante algum tempo o tecido suave do cobertor com as pontas dos dedos, e depois de ter reconhecido que aquele menino que ela tinha à frente o fizera por ela, para seu bem, deixara-o cair e aproximara-se da janela em passo de corrida. Confirmava-se. O mar podia ser visto daquela janela, a que ficava imediatamente à esquerda da porta, falando da perspectiva do interior. Apesar da tentativa pouco simpática do mar de poucas horas antes ter tentado engoli-la, a menina não deixou de admirar a vista, agora que o Sol tinha espaço livre para estender na totalidade todos os seus raios. Parecia que, com a vinda da menina à janela, o astro-rei encontrara um pretexto para se fazer galã e, raio ante raio, beijar as maçãs-do-rosto rosadas da menina. O calorzinho bom fizera-lhe muito bem, parecia estar a recuperar vida progressivamente.
É de notar que, nem um, nem o outro, quisera saber o nome do que estava defronte. Sim, claro, a menina perguntara ao menino quem era, mas, sem qualquer tentativa de ludibriar a pequena, talvez fugindo à pergunta, respondeu com todas as letras, ainda que inconscientemente, que era aquele que a tinha salvo de morte certa. E chegava. Mais do que isto era transmitir informação a mais, justamente. Que interessam os nomes das pessoas ou das coisas, afinal? Tudo não passa de uma necessidade linguística da qual alguém se lembrou, só para confundir o sentido das pessoas e das coisas. Estavam muito bem assim. Sabiam que, a partir daquele momento fatídico tornado colorido e vívido, poderiam confiar um no outro.
O menino não quis deixar de saber, ainda assim, que fazia aquela menina, que por acaso começava a olhar o menino com olhos cada vez mais fixos nos seus pormenores, que só os seus olhos poderiam reflectir, ali perdida no meio do mar.
― Estava com os meus pais, no barco deles... Não sei dizer exactamente o que aconteceu... Eles começaram a ver que o tempo não estava para melhorar, porque já se sentia nas velas a força do sopro do vento, como se estivesse a encher um balão, sabes...? E então, gerou-se uma certa azáfama e tivemos de partir de volta para terra. A água já começava a respingar muito para dentro do convés, que acabou por se tornar escorregadio. Eles corriam de um lado para o outro, fazendo mil e uma coisas ao mesmo tempo, e eu ali estava, no meio deles, querendo ajudar fosse de que maneira fosse, mas eles diziam-me para não me preocupar e para ficar quieta, devendo descer para dentro. Só que não quis sentir-me inútil! Por isso procurei ajudar, fazer qualquer coisa para nos fazer chegar o mais depressa possível a terra, mas tudo o que consegui foi escorregar e...
O menino percebera já o suficiente. Estava sentado, na mesma posição onde estivera até agora, olhando a menina falar para o seu próprio reflexo, espelhado nos quatro vidros da janela. Para que não sofresse mais na explicitação do seu relato, o menino levantou-se, foi ter com ela e colocou uma mão sobre o seu ombro, gesto em muito apreciado pela menina, que sentira, num só toque, um enorme conforto. Passando por cima do óbvio sucedido, avançou um pouco na história, em direcção ao final.
― Eles deveriam pensar que eu estava bem, em segurança, dentro do barco, longe de toda aquela confusão em que andavam. Com certeza já devem ter dado voltas possíveis e impossíveis ao barco, à minha procura... Tenho de os encontrar de novo. Será que podias... – a vergonha assaltara-a, impedindo-a de completar a frase.
Por instinto, o menino completou o pedido por si.
― Ajudar-te a encontrar os teus pais? Claro que sim. Podes contar comigo para tudo aquilo de que precisares. Não nos conhecemos há muito tempo, mas podes chamar-me teu amigo, que o mesmo farei contigo.
Sorriram ambos, e ambos acorreram um ao outro para se entregarem no abraço que o outro tinha para oferecer. Durante um bom bocado, doce como é este nome, ficaram agarrados um ao outro.
O silêncio comunicado por parte da restante habitação soava, por incrível que pareça dizer que o verbo é mesmo esse, estranho. A menina perguntou então, com a curiosidade lentamente a invadi-la, porque é que o menino ali estava sozinho. Em breves palavras, não por tristeza sentida, mas simplesmente porque não havia nada por que verter cascatas de salinas dos olhos, o menino explicou-lhe a sua história. Disse-lhe que a família não existia mais por tais razões, que em todo o caso podia contar com o apoio das varinas da lota, elas próprias vítimas iminentes da viuvez, e que pescava, pescava muito, não só para sobreviver, mas também para viver. Assim aprendera a levar os seus dias, e assim continuaria, algo que a menina ouvira com uma certa tristeza, especialmente na parte de o menino não ter família, mas que, sem qualquer outro remédio possível, respeitava.
Urgia, era necessário, começar as buscas pelos pais da menina, o quanto antes, não fossem eles pensar que estariam obrigados a sofrer um eterno desgosto, por sua vez antinatural. A menina queria ir até ao mercado de que o menino falara antes, talvez eles andassem por lá à sua procura, perguntando às pessoas se haviam visto uma menina com tais características, iguais às da fotografia que certamente ostentavam sem cansaço sentido na mão que apertava com força esse mesmo retrato, ligada a um braço que se mantinha erguido, sem dar perspectivas de vir a descansar tão cedo, custasse o que lhe custasse.
Mas o menino contrariou-a com uma hipótese que lhe pareceu mais lógica, baseada em muito no seu próprio historial. Quando o avô se perdeu no mar, neste caso, para sempre, assim como o pai, esperara notícias por parte de outros pescadores que procuravam pelos seus familiares desaparecidos, sem, contudo, sucesso. Assim, rapidamente o menino puxou a menina pela mão, muito firmemente, e rumaram até ao barquinho que secava ao Sol, já com as últimas gotas do temporal completamente escorridas sobre a areia. O menino nem precisara de pedir ajuda à menina para desencalhar a embarcação. Disse-lhe para subir e, mesmo com o peso da menina, que era proporcional ao seu e, por isso, bastante leve, empurrou ambos, a menina e o barco, rumo às primeiras ondas que, como fazem os meninos com birra, vão batendo na areia só porque não podem ir para mais longe, para o pé das ondas maiores e fortes.
Em vez de esperar pelo efeito de bolina das velas, o menino pegou num par de remos que tinha guardado no interior do seu barquinho e começou a remar, a remar muito, com todas as forças que tinha, tal como dera aos braços e às pernas não muitas horas antes para salvar aquela que estava sentada à sua frente, mirando o horizonte, à espera de um motivo para festejar, não esquecendo nunca aquilo que aquele menino, feito em tão pouco tempo seu amigo, por si fizera. O bom tempo ajudava em muito à deslocação constante do barquinho. Visto de longe, pareceria um barquinho de papel, construído com amor por uma criança habilidosa que nesse mesmo barquinho deposita todos os sonhos do mundo, enviando-o na missão de os ver cumpridos, leve o tempo que levar. Anos mais tarde, quando essa criança tivesse entrado na idade adulta, quando já tivesse de pensar nas coisas e ter responsabilidades, lembrar-se-ia de quando enviara esse barquinho e de como os seus sonhos se haviam tornado realidade. Para isso, basta querer.
Algum tempo mais tarde, já o Sol se erguia no seu ponto máximo, lá em cima, onde só as estrelas vivem, muito acima dos anjos que caminham sobre as nuvens, os meninos avistaram um outro barco. Ainda estavam separados em alguma distância para um poder ver com precisão o outro, mas progressivamente o reconhecimento concretizou-se. A menina conseguia ver que o barco que ali estava a navegar perto era o dos pais, que andavam como baratas de um lado para o outro, procurando cobrir com os respectivos olhares cada milímetro cúbico de água. Então a menina entregou-se a uma óbvia felicidade e chamou.
― Pai! Mãe! Estou aqui! Encontrei-vos!
A primeira palavra que a menina dissera fora suficiente para, tanto pai, como mãe, se virarem para o mesmo lado, encontrando os seus olhares o olhar da filha, cheio de alegria e comoção por se reunirem uma vez mais, quando tanto eles como ela pensavam que não mais se veriam. O menino, movido pela felicidade que atingira a sua nova amiga, remou ainda com maior força, como se tivesse uma carga de energia suplente, da qual ele próprio não sabia. Assim, num ápice, ambas as embarcações deram as mútuas boas-vindas, encostando-se uma à outra, como se elas próprias já não se vissem há muito tempo. A menina saltou então para o barco dos pais, saltando depois para os braços de ambos, que a seguravam com uma inconfundível ternura.
― Encontrámos-te, meu amor, encontrámos-te!
― Nunca mais deixamos que mal nenhum te aconteça, está prometido e jurado!
De amor estavam carregadas as palavras que tanto o pai como a mãe haviam dirigido à filha. Ela também mostrara palavras plenas de afecto para com os pais, mas sabia perfeitamente que não estava ali sozinha com eles. O menino permanecia no seu barquinho, sentado na sua serenidade de sempre.
― Pai, mãe, este menino é o meu novo amigo. Salvou-me da tempestade de ontem e ajudou-me a encontrar-vos.
O pai e a mãe entreolharam-se, de espanto.
― Palavra? – exclamaram ambos.
Disseram logo que não podiam encontrar as palavras adequadas para demonstrar a gratidão que sentiam para consigo por ter salvo a filha e ainda a ter ajudado a encontrá-los. Exclamaram, não por mal, porque não sabiam, e também porque era natural dizer-se isso a uma criança, que os seus pais deveriam também eles estar muito orgulhosos, não só do seu feito, mas também da sua maneira de ser em geral. Muito descomprometidamente, o menino disse, nas mesmas palavras que oferecera à menina, que estava sozinho no mundo.
Também da boca para fora, mas com a melhor intenção do mundo, forrada e estofada de incomparável ingenuidade, a menina fez um pedido.
― Vem viver comigo! Podemos ser como irmãos! Fazemos tudo juntos!
Neste compasso de tempo, que foi desde a primeira à última exclamação da menina, o menino não conteve, como já não acontecia há muito, as lágrimas que ansiosamente esperavam poder ver a luz do dia. Uma de cada olho, muito sorrateiramente saíram, evidenciando-se com o trespassar dos raios solares sobre o rosto do menino. Depois de ter olhado algum tempo com um sorriso sincero a menina e os pais desta, proferiu estas palavras:
― Ficar-te-ei eternamente grato pelo pedido que me fazes, mas não posso responder-lhe da maneira que gostarias... O meu lugar é aqui, no mar, com o meu barquinho, os peixinhos e a minha casinha. Mas não fiques triste, porque uma coisa te digo: viverás sempre no meu coração, e poderás visitar-me sempre que quiseres. És minha amiga para sempre.
Com as lágrimas também a escapulirem-se dos olhos da menina, a resposta dela não perdeu a graciosidade.
― Meu amigo serás também para sempre, aconteça o que acontecer.
Findas as palavras, abraçaram-se um ao outro, enternecidos pelo carinho mútuo, que tinha tudo de genuíno, verdadeiro e incondicional.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Reflections on Valentine's

I have never been happy for too long, that is both the sad and ugly truth I am beginning with.
The number of girlfriends I have had can be found within the fingers of just one hand; I am not much of a scoundrel, if there really is a part of me related to such a character. I do not care what others might think. I did before, I do not anymore.
Numerology has always had a special meaning to me. I have always related three to folklore, seven to luck and fourteen to Valentine's. Because that was yesterday, so I am mentioning it face value, though it still is from Greenland to the West.
Up to this year of our Lord of 2015, I have only celebrated Valentine's twice. In other occasions I had either started dating a girl after this day or I would just not reach the following calendar.
I have always believed in the power of love, from man to woman, woman to man, man to man and woman to woman, for I am not a ridiculously prejudiced bastard.
One year ago, I was asking my last girlfriend to be my Valentine, on Valentine's. It was Friday, the morning was yet to rise with the Sun. We were not by each other. She was far, far away from me. We could only see each other because of globalisation. Other than that, it would not have been possible. Her answer to my question was yes. She pronounced the magic word and broke into tears of joy and happiness. I felt the happiest human being alive, still in my jammies, with my robe on, wearing glasses, my hairdo dismantled by both the pillow and my anxiety, my eyes still swollen from forcing them open. I was not dressed for a night out, romantic dinner, candles, violin sonatas, stars above in the sky watching out for me so I would not screw it all up, but I did not mind. It is the true you they have to meet, the world, not the perfect ideal of you.
Before one of the happiest days of my life, I had lived an adventure, in London. I was looking for a job as a Drama Teacher in some secondary school, but I was really not certified, so I did not stand much of a chance. I had not even thought about conducting a research that would very soon reveal itself to be my PhD thesis today. So I was in the Tube, one evening, though it was really about 4:30 pm, sitting in a carriage riding the Bakerloo line. At Charing Cross station, a girl hopped aboard the same carriage and sat in the bench in front of me, a bit to my right, let us say my one o'clock. She was not just any girl. She was the girl. Emerald-green eyes, fair, short hair, fleshy lips, face of an angel, wearing a white skirt with some flowers on it. Her shoes were sober, simple, and so was her jacket, her sweater and her leggings - dark, mysterious, unrevealing, surprising. She had no make-up on her face. She did not need to wear any. I fell in love with her the moment I saw her. I did not have the time to analyse or survey her this much. I only realised afterwards I had gotten every detail of her semblance. The next month I actually flew back just to try and find her in one of the largest metropoles in the world. No such luck. I tried everything I could. I nearly camped in that station. There were times I was drawn back at the same time I had seen her the month before, and there were other times I would go to the station when it opened, by 6:00 am. I never slept much doing this sort of craze. Maybe two to three hours, tops. I just feared I would be smelly when I found her, so I always did my best to look sharp and avoid scaring that beautiful creation by Mother Nature. At some point, I felt motion sickness from sitting in one of the benches and keep staring at the trains coming and going, trying to find the slightest detail that would lead me to identifying her. More to that, I would refrain myself from having something to eat, first, as I thought I would have the time in the future to do that, with her. Many will say I believe life is some sort of fairy tale. They may be right, it is not. However, if we do not add a bit of fantasy into our reality, then what is the point of dreaming and smiling for imagining we will someday and eventually be happy for all time with the person you love the most and believe is right for you? I never found her, I never knew her name, what she did, where she lived, whether she had already found her loved one... no clue at all.
I had not fallen in love with someone so vividly for nearly three years. Again I say, I do not fit in a scoundrel's description. It was precisely that long ago I thought I had established myself for the rest of my life, actually thinking I would marry that woman in a bright future, always in love, always passionate about each other. The problem was my concept of romance back then was too literal, too 19th century, too daft.
Today, I am in love again. Nonetheless, I am afraid of screwing it up, again, I am afraid of losing a friend, I am afraid I will be let go for having the wrong feelings, I am afraid I will lose a soul mate, meaning we share the same perspectives over the world and, who knows, the cosmos, I am afraid I will never find real happiness for myself.
Today did not hurt like it did once or maybe more than that.
Today was just a regular day, without the hope to change it and make it sunny.

Originally posted on Facebook, February 15th, 2015.

Livro

Mais uma vez, um texto com alguma idade, mas possivelmente dos primeiros que rascunhei no meu bloco de notas Moleskine. Gostei do que escrevi na altura, mas tratou-se igualmente de uma época em que as escritas por aqui estavam já desactivadas. Está bonito e vale a pena recordar.

Pára. Não fales. Ouve, escuta: este livro irrequieto que escrevi, escrevi-o a pensar, não em mim, mas no teu sorriso, quando to desse, para que nunca te esquecesses de mim e de como te amo de uma maneira que nenhum outro poderia conhecer e reproduzir.
Mesmo quando já for pó e fisicamente me encontrar derretido, a minha alma continuará a roçar a mão esquerda sobre a tua direita, para que possas dar lugar a um só teu Sol que te ilumine o caminho e te sugue de novo dos teus pesadelos quente-medo para a fria mas tolerável realidade da qual já não faço parte, senão em sonhos, porque não vivo.
Se a vida é um sono profundo, eu não o saberei dizer, porque não durmo, sou etéreo. Mas este livro que é teu e é para ti fará com que o teu sorriso desabroche de novo, cantando uma vez mais, em conjunto com o jasmim primaveril, a sinfonia das noites de Verão que antecipam o teu nascimento escuro e outonal.
Serei teu até quando me quiseres teu, mesmo naquela vida em que já não somos o que nos designaram para ser, mas sim aquilo que queremos ser.
Faustosamente declaro o meu amor por ti, sem qualquer pudor ou piedade de palavras simples que todos compreendem e que eu quero que permaneçam no escuro, sob pena de se apropriarem daquilo que é de mim para ti e que só para ti escrevi. Sinto-me maestro desta orquestra de pensamentos e de sentimentos cujos músicos tocam cada um para seu lado, não se entendendo na relação que partilham entre si, mas que imaginam ser separada, sem mútuo acordo possível onde a informação do córtex visual se une ao fluido imaterial que o coração bombeia com cada vez mais força a cada novo compasso que toca, e tudo isto só porque olho para ti, na realidade, ou tudo isto só porque sonho contigo, no sono profundo, em que te vejo ainda mais majestosa do que a saudade física me impõe sentir. Desenho-te sem uma única mecha de contornos esbatidos, recuso-me a dar por terminado um esboço onde não estejas completamente delineada e onde a aguarela do amarelo-verão misturada com a do azul-mar não seja bem visível.
Na minha tela sem fim, não me canso de continuamente te acrescentar mais e mais perfeição, como se Deus fosse, ao criar vida assim tão perfeita como a tua e que me deixa a mim vivo, não em decadência, mas em suprema energia carnal e espiritual, com a qual me sinto uno e um só a dois, porque não estás em sonhos, mas sim essencialmente unida a mim.
Este livro que escrevi para ti, guarda-o, não para que o leias, porque as minhas palavras, ó sofrimento poético, não são dignas de ti, mas sim para que possas recordar o ser angelical que em mim existiu e que um dia te raptou do mundo para que o Paraíso ficasses a conhecer tal como ele é para ti, e não para os comuns mortais, porque a tua vida não é mortal, continua a alimentar-me mesmo sendo o fantasma que em teu redor vagueia.

Novembro de 2010.

domingo, 4 de outubro de 2015

Press Release Finalmente «Released»

Viagem ao Centro de Ti é um poema épico composto pelo actor/"poeta" (aspas do próprio) Tiago Lameiras, autor do já consagrado poema épico de carácter sarcasticamente nacionalista Portvcale - «A Epopeia Portuguesa da Contemporaneidade» (Mosaico de Palavras, 2010), debaixo do calor do Verão de 2011, publicado agora em Janeiro de 2012, sob a chancela da Chiado Editora. 
De acordo com a sinopse, este poema, que será mais coerentemente classificado como sendo um «romance trovado» ("romance" no sentido lato do vocábulo e "trovado" por ter sido escrito em verso, o que, segundo o próprio autor, se tornou na única forma possível de expressar a verdadeira mensagem da obra, fazendo um elogio vero ao papel de destaque que a poesia assume no campo da Literatura), o sujeito poético aventura-se numa viagem de sonho, literalmente. Quer isto dizer que o domínio do onírico está patente do princípio ao fim desta viagem, levando o próprio leitor, com quem é estabelecido um diálogo directo, a deixar-se dominar pelo transe do sonho dentro do sonho, encaminhando-o para as sucessivas epifanias com que o sujeito poético se vai deparando e que servirão igualmente de lição a quem quer que deseje acompanhar esta longa jornada.
Inspirada no poema épico e teológico de Dante Alighieri, A Divina Comédia, a viagem propriamente dita é enriquecida e complementada por histórias paralelas que de alguma forma se cruzam com o fio condutor da acção principal, abordando nomeadamente a mitologia grega (e consequentes tragédias daí originárias, compostas pelos principais tragediógrafos gregos - Sófocles, Ésquilo e Eurípides), bem como a mitologia cristã.
Esta composição poética, que procura ser harmoniosa nas imagens que transmite através da descrição, é também intemporal. Num sonho, tudo é possível. Por isso mesmo, o diálogo entre os vários períodos da História torna-se possível neste poema. Tão depressa nos encontramos na contemporaneidade (do princípio do século XX ao tempo presente), como aterramos de pára-quedas na Antiguidade Clássica ou nos períodos bíblicos. 
Mas, quem melhor para falar sobre a sua criação do que o próprio autor? Tiago Lameiras deixa-nos estas palavras: “a Viagem [ao Centro de Ti] não surgiu por acaso... Um pouco ao contrário do Portvcale, cuja inspiração foi súbita e baseada essencialmente na leitura dos poemas homéricos, que foi algo que eu deixei sempre bem claro na altura em que foi lançado. Mas o que é facto é que a Viagem aparece como uma reflexão pessoal. 
Os sonhos acontecem por uma razão, como vem expresso na capa, e nesta situação o sujeito poético parte com um propósito essencial, ele vai à procura do seu amor, e nada mais lhe importa no momento em que inicia a viagem. Só que à medida que vai percorrendo o seu trajecto, algo sinuoso, por sinal, tanto no sentido físico como metafórico, este sujeito apercebe-se de que de facto a viagem ao centro dele, do seu amor ou dos dois, até, não significa necessariamente que este centro seja o núcleo de todo o seu universo, como erradamente pensava até então. Não, trata-se de perceber que existe toda uma realidade à sua volta e que a sua amada, embora desempenhe um papel preponderante na sua vida, o que é algo absolutamente normal, não é, de todo, a única pessoa existente no seu mundo. 
Eles desencontraram-se, em determinado momento. As razões não são importantes para esta história. Mas, como todos os seres humanos, cometeram erros, não exactamente um mais do que o outro, mas o que é certo é que os cometeram, e é essa a principal razão que leva o sujeito poético a querer empreender esta aventura, com a ideia de que poderá reparar tudo se procurar a sua amada. E o que é facto é que, sem prejuízo de estragar o final da história, eles encontram-se naquilo que poderá ser uma ideia de paraíso, só os dois, sem mais ninguém à volta para, portuguesmente falando, mandar palpites, este momento só a eles lhes pertence. 
O amor do sujeito poético reconhece-lhe a coragem, sabe que a prova por que passou foi dura, mas ela não pretende que o sujeito se redima dos pecados, ou corrija os erros que cometeu, porque estes servem somente de aprendizagem. Não saberíamos o que é o certo sem termos noção do errado, a vida baseia-se nisso mesmo, em contrários. Não enfrentar nunca a tristeza implica que não saibamos como é bom voltar à alegria, com a sensação de alívio por tudo ter corrido bem e por ter surgido um entendimento em relação a determinada questão. E é esta a eterna viagem, à verdadeira essência, que deve continuar a ser percorrida, para que o auto e o hetero-conhecimento dêem as mãos e caminhem juntos, lado a lado. Só assim é que conseguimos realmente crescer. 
Termino só com uma breve nota, que apesar de breve, tem a sua importância: o sujeito poético não teria embarcado nesta empresa se não tivesse a certeza de que realmente valia a pena, não teria posto em risco a sua vida se não estivesse absoluta e indubitavelmente confiante de que aquela donzela pela qual busca ao longo de toda esta odisseia é o seu verdadeiro amor. Ele não precisa de procurar mais ninguém, nem quer, porque ele sabe que, quando o amor é verdadeiro, todos os dogmas caem por terra, permitindo a nossa comum reinvenção. Ele ama-a, e isso nunca constituiu uma dúvida. Não... Nem por um momento”. 
E com isto não dizemos mais nada.

sábado, 3 de outubro de 2015

A Short Note on Metaphysics and its Relationship with the Arts

It has not been scientifically proven, in spite of René Descartes’[1] (the foundational father of Cartesianism and Rationalism) attempt of claiming otherwise in his Meditations on First PhilosophyIn Which the Existence of God and the Immortality of the Soul Are Demonstrated, which presented the philosopher’s first impressions on metaphysics, as we now demonstrate in the third chapter, «Meditation III: Concerning God, That He Exists»[2]. So, to begin this essay out of curiosity and enrichment of study, Descartes divided his ideas over the existence of God into three:

1) Adventitious;
2) Fictitious;
3) Innate.

Adventitious

The first kind is curiously related to the philosophical point of view he will reject in the 17th century, when he lived most of his life, i.e. Empiricism[3], fought for by Bishop George Berkeley (1685–1753), David Hume [also known for scepticism (1711–1776)], Thomas Hobbes (1588–1679), John Locke [the most important contributor to the laying out of Enlightenment (1632–1704)] and Jean-Jacques Rousseau [whose philosophical views influenced the French Revolution and Romanticism[4] in general (1712–1778)].

Fictitious

The second kind is related to imagination, the ability humans have to produce something which does not exist in their minds, then turning it into reality, i.e. the right cerebral hemisphere, which is also responsible for the left side of our body, produces invented aspects in one’s life, as well as memory storage, which enables people to remember at least the shape of certain objects such as a chair or a table – no matter their formats, they are always based on a, and pardon our redundancy, concrete concept, visually acquired by the left cerebral hemisphere, held responsible by the right side of the body, as well as many important functions such as communication – Broca’s area, related to the ability of speech, is located in the left side of the human brain, though this may change on the count of left-handedness. However, it is interesting that accentuation and intonation, being related to language and studied by the linguistic science of Prosody, are based in the right-hand side of the brain, all of this because people can choose and thus imagine how they wish to speak, an artistic characteristic that applies to just about everyone.
 We will see in a short while how the philosopher responds to this as far as the existence of God is concerned.

Innate

Finally, regarding the third type, Descartes writes that God placed himself in us. This is an innate (natural) idea because it is born with us. That is why the idea (antonym of concept, we must stress) of God cannot be related to the others.
Now, when we hold on to a theory, just like us throughout these pages, we must present actual facts that can indeed prove and defy common sense. That is why we recur to scientific knowledge, which we study through epistemology. Let us take a look at Descartes’ two arguments to prove the existence of the Almighty.

«Argument I
“Something cannot come from nothing.

1) The cause of an idea must have at least as much formal reality as the
     idea has objective reality;
2) I have in me an idea of God. This idea has infinite objective reality;
3) I cannot be the cause of this idea, since I am not an infinite and perfect
     being. I don't have enough formal reality. Only an infinite and perfect
     being could cause such an idea;
4) So God — a being with infinite formal reality — must exist (and be the
     source of my idea of God);
5) An absolutely perfect being is a good, benevolent being;
6) So God is benevolent...;
7) So God would not deceive me, and would not permit me to err without
     giving me a way to correct my errors”.

Argument II
“[My existence and the causes to make it possible].

1) I exist;
2) My existence must have a cause;
3) The only possible ultimate causes are:


a) myself;
b) my always having existed;
c) my parents;
d) something less perfect than God;
e) God.

4) Not a. If I had created myself, I would have made myself perfect[5];

5) Not b. This does not solve the problem. If I am a dependent being, I
     need to be continually sustained by another[6];

6) Not c. This leads to an infinite regress[7];

7) Not d. The idea of perfection that exists in me cannot have originated
     from a non-perfect being[8];

8) Therefore, e. God exists”».

Descartes had a clear and distinct idea of God. So, in the same way that the cogito was self-evident, so too was the existence of God.
However, if Descartes had had the chance of taking a look at our footnote counterarguments, we believe it would not be so easy for him to reply. This is no case of «Aunt Sally»[9], and António Damásio[10], through his Descartes’ Error[11], did not stand up to a «straw man», he just told the truth. Reason cannot be separated from emotion, and the legendary case of Phineas Gage demonstrates that well enough[12].
In addition to this, there is a surprising fact about René Descartes many are not aware of. He was said by close friends to be an atheist. We shall leave the reader to their own conclusions.
Some people go even further and say there is no God at all, no heaven. It is all a story written by allegedly wise men, the composers of the Bible.
José Saramago (1922–2010), the only Portuguese winner of the Nobel Prize for Literature (1998), is one of the most brilliant men of our time who clearly stated there really is no such thing, though he did explore many of the biblical subjects in his oeuvres, completely modifying Christendom as we know it. Just to name a few titles, The Gospel According to Jesus Christ[13], Death with Interruptions[14] and Cain[15]. If this man lived in the Middle Ages, especially from the reign of John III of Portugal beyond, he would have been thrown in the fire[16], just like his well-known character Baltasar, from Baltasar and Blimunda[17], the only novel studied in the Secondary Stage signed by him, which is something soon to be changed.
One of the biggest problems Philosophy faces today is divided into two different possibilities, as we should expect right from the start. What is going on with intrinsic values? Is there a crisis or a substitution of them? We can always take sides, prepare our arguments for the debate and face the opposition. However, as we have already seen before plenty of times, we cannot claim our position is the only right, because there is no such thing as absolute truth, no matter how paradoxical this statement may sound.
Debating is just that, it is about enriching, learning and sharing our knowledge with what other parties have to say in order to keep seeking better lifetime quality for us to live in community appropriately, notwithstanding we must have the right to private property, especially when we work towards it, and not just nationalise everything and let either Capitalism or Communism prevail alone.
That is how life works, it has to scale its components in order to obtain the required balance. Extremism is fallacious, whichever the field (Politics [left or right-wing] is the most common to be associated to the vocable in hand and ever since recorded History we know how civilisation has been destroying itself and is working its way towards failure, for the thirst for power is the work of corruption once people enthrone it, even if before they were humble and modest), but the Arts, also commonly left behind, have their say in this too.
From the moment a convention is made, Art is not Art anymore. One thing is clear: when we study aesthetics, we realise how much[18] currents have travelled throughout thousands of years, or 2,500 to be somewhat precise[19]. From 500 years of Classicism [Greco-Roman, Hellenism and Roman] to the Christianity motifs’ stagnation in the Dark and Middle Ages up to the Renaissance of the Classic themes comeback. After this period, the Arts evolved into something new every 100 years until now. We are stuck in Contemporaneity because we are not satisfied with the changes we kept doing in our lives.
Just like planet Earth is living a cycle our pollution is messing with, so are we. And this time it is not the Church’s fault. We have struck the Middle Ages again. Our lack of contentment with ourselves and the world around us keeps throwing us towards change to a point we cannot tell fashion from ridiculousness, kindness from marginality, Jehovah from Lucifer.
Now this is a rather interesting religious debate. It is almost unthinkable to praise the demoniac figure, taking into account all of Mankind’s recorded History. But the truth is, however, that ever since the constitution of the Egyptian civilisation in the Near East, multiple balances have been kept in the West between Good and Evil, Order and Chaos, etc. In Christianity the same happens as well, though this denomination is looked at as pure heresy. That is why the Church found a way to permanently destroy these heretics by founding a new order, but we all know sects are like cockroaches, for a single squash always brings the rest of the family to the funeral.
Gnosticism is at first sight the synonym of worshipping the devil, especially when referring to a specific group of people, the Cathars, who originally lived in the southwest of France and because of the Inquisition travelled to Catalonia in the 13th century, in Spain, thus gaining their designation. For the Roman Catholic Church, what the Cathars did was to praise Lucifer[20] in detriment of God, whose power is so great that invoking His name is always something vain. But the fact is His name is Jehovah, and He has an opposite[21].
As we have mentioned before (and we can go back to the biblical Book of Genesis in support for this story), Jehovah did not want Adam and Eve to even touch the Tree of Knowledge, let alone eat an apple from it. Nevertheless, the first mentioned temptation of Lucifer as a snake was to convince Eve to pick an apple from the tree, eat it and then share it with Adam, who choked on it, but not to death. The forbidden fruit gave them knowledge, they lost their innocence instantly. This demoniac work had them kicked out of the Garden of Eden, never to be entered again. And because all of Mankind was corrupt, it was wiped out by the Great Flood. We already know this passage.
What is really important is the Cathars did not root for Lucifer. They were the only ones who kept the balance between the two deities. They knew that if only Jehovah was followed, then they would be deprived from knowledge and would not possess any ambitions at all, and not necessarily frivolities only, but useful things as well. On the other hand, by allowing Lucifer to smite Jehovah, then the world would fall into the hands of the worst that can happen to a soul, making it corrupt and unworthy of Paradise, based only on ambition, determinism and individualism. The concept of society would cease to exist and Aristotle’s statement[22] would not be true.
So the inevitable conclusion here is there has to be a balance on the grounds of just about everything in the world, because there is no such thing as perfection, no matter how much we aim at it. The problem is we have not yet made ourselves aware of that.
There is no value crisis going on, not as much as there is a substitution. There is a scale and Humanity is looking for its balance, but we have not yet found it. We will, maybe in a few years. Evolution stopped growing[23] by centuries when it reached the 20th. Now the time span is shorter, it goes by the decade and can be denominated by Music starting from the 50s up to the 2000s, i.e. Jazz, Rock/Pop rock (Hippies), Disco, Pure/Synthesised Rock, Gangster Rap/Hip-Hop and finally Mainstream. Now we are in the 2010s, there are brave people who are trying to eradicate the preconceived and who are being very much successful, not only because they are trying something new, but also because they are mixing new waveforms with what has already been done and was good.
Unfortunately, not everyone can find the balance that easily and cannot filter good from bad. This happens for one particular reason Psychology supports, and that is the failure to build a mentality the same age as the body. The Athenian motto was «a sound mind in a sound body». The problem is they are not synchronised most of the times. People grow physically, they age and there is nothing can be done to stop it, no matter how young we wish to remain. However, the mind may not evolve as much as the body. This is the consequence of a yet to be defined personality, even if the individual is already an adult and is going for the middle age. It is not about education alone or the way someone was brought up, raised. It is about oneself, and one might not have yet gathered the required tools to just think properly in consonance with particular situations.
People do not have to be ill to do psychotherapy. This is a process that can make a person get better acquainted to themselves. Sometimes we believe we know ourselves very well, better than anyone else, but that is a false statement. The neural iceberg is shallow at surface, but how deep does it go underwater? It is always a question of risking and trying to find out, not because of others’ advice, but for us and us alone.
For instance, it is said by some an actor needs not know how to sing properly. That is rubbish, plain rubbish. An actor is a mime and Plato, hidden under the voice of his master, Socrates, is wrong when he says Ion, the rhapsode, cannot speak or even stay awake when talking about poets other than the greatest, Homer.
If we take a closer look, we can tell Socrates’ advocate cares about the need for Man to get to know himself, for wisdom, according to him, is knowing not more than anybody else, but rather what we know not, the synonym of Philosophy. He also believes knowledge makes Man virtuous, erring only on the count of ignorance. Consciousness is required in order to avoid mistakes. Considering he is fair, Man will have the concern of perfecting not only himself, but everyone around him, thus becoming diviner.
So Ion is the rhapsode, i.e. he who recites poetry not belonging to him and without the aid of a musical instrument. This is the point in which the difference between the rhapsode and the bard is made. The latter recites his own poems while playing the lyre. Together with the work on declamation (paid for and presented in rhapsodic competitions), there is a mimic process[24], therefore driving Plato’s Socrates to similarities between reciters and actors[25], especially because their costumes are made of vivid colours and fabrics and they also carry a golden crown on their heads.
Homer was the poet the rhapsodes privileged the most and that is why Ion claims to be an expert of the Homeric poems, more than others. Socrates therefore wishes to know the origins of poetry, whether in art or in divine inspiration. Until he is fully convinced poetry comes from the Olympus, he will insist on the artistic perspective.
Ion, who is arriving from Epidaurus, where the Greeks celebrate Asclepius’s rhapsody festivities, tells Socrates he won the first prize, which is the pretext for the introduction of the essential, having the master state he actually envies rhapsodic art, for its practitioner must wear flamboyant clothing and master the work of several poets, especially Homer’s, the best and most divine of them all. It is necessary to understand the poet’s work, otherwise it would not be possible for Ion to be a rhapsode, who is, in fact, the interpreter of he who was inflated by the Muses’ inspiration. He fesses up what gave him most trouble was to really understand Homer’s work, the poet for whom he best expresses his thoughts than anyone else.
At this point, Socrates subtly challenges Ion into proving he is the best at comprehending Homer and his poetical oeuvre, to which he responds as being the best there is, a specialist, we should add, only in Homer. With the obvious intent of confusing Ion so he can actually realise what the master already knows to be true, Socrates refers to Hesiod, another poet, as commenting several aspects of the day-to-day life, just like Homer. Ion had said he was a specialist only as far as Homer was concerned, but can he exclusively explain his words or Hesiod’s as well, considering the subjects are the same? Ion is contradictory, here. Now he says he can explain the oeuvre of both poets.
Socrates then handles the dialogue in a different way. Both Homer and Hesiod talk about divining art, a matter about which they will share and oppose opinions. On the grounds of clairvoyance, Ion admits only a master of that art would be able to better explain the difference between the poets. This remark is really not innocent, as the intention is to start figuring out who can better understand a specific art, and the pointer lies on those who work on it.
After that, another matter steps above, the war and the relationships between good and bad men. Socrates asks whether this is spoken of by poets other than Homer, so he can perceive if the rhapsode is really specialised in the work of Homer. Ion acknowledges there are many other poets who speak about war and the opposition between good and evil, but they could not do it the same, extraordinary way the greatest poet did.
Plato’s master can now proceed without interruption with a few good examples, beginning with this introit: only one person can confirm what is right or wrong on a certain subject. For instance, the difference between healthy and junk food can only be realised by the doctor. If there is the chance someone cannot acknowledge what is right about something or what is wrong, than they will not be able to perceive the counterpart. Ion, however, claims he can distinguish the poets who are actually right about something from those who are not. However, there is something particular about this ability. Why does the rhapsode feel sleepy when talking about poets other than the greatest, Homer, who wakes him up into activeness all over again?
The answer is quite simple: Ion does not know Homer artistically or scientifically, as there is a poetical art that would make him able to speak about every poet, just like there is painting, sculpture or flute playing. For all three examples, Socrates asks Ion whether he has already heard about someone who could actively speak of a renowned co-artist and felt sleepy when mentioning some other artist from another branch of the arts. Ion agrees with Socrates in every way, but cannot let go that it is his Homeric knowledge which awakes him.
In the aftermath, Socrates states it is not art but rather a divine force which leads the rhapsode to his undoubtful knowledge on Homer. In fact, good poets produce beautiful, epic poetry because they are possessed and inspired by deities, the Muses, who lead them to a determined path or genre. That is why they are better at epics than iambs, for instance. Poetry is the result of irrationality. It only comes out when poets are out of control, inspired and possessed by the divine. Since poetry is gifted with several genres, epic poets cannot produce encomiums, for the deity controlling them led them somewhere else. They are therefore rudimentary in the field. Socrates still adds poets are not the authors of the words they produce. The Muses are, expressing themselves through these humans with the gift of poetry, making them their interpreters. The rhapsodes are by turn the interpreters of poets.
This divine force is thusly and continuously perpetuated over everyone. First, the poet. Second, the rhapsode. Finally, the spectators who listen to the rhapsode’s declamation. A long ring chain is therefore created, connecting them all. The majority of poets is connected to Homer, who is, after all, a divine poet. It is because he is possessed by Homer that Ion can better speak of him than any other poet, who will probably make him feel sleepy and bored.
Socrates clarifies the idea the arts are independent from each other, confronting Ion with the fact he might not be aware of all the matters described by Homer, though the rhapsode is willing to refute the statement. The master then asks Ion to recite the verses from Iliad in which Nestor gives advice to his son Archilochus, so he can use it when horseracing against Patroclus. The recitation deliberately explains only someone who is truly acquainted to the art in question, such as the coachman, who would be able to tell what is right and wrong about Homer’s verses.
Though he realises each artist can only understand their own art and none other, Ion says the verses he understands best are all of them. However, the statement contradicts the entire dialogue, as all arts are separated. Ion opposes and says he is aware of the type of language utilised by a man or a woman, a slave or a freeman, a subordinate or a high-ranking officer. Socrates disagrees, as Ion would not be able to understand medical or looming language. However, he should know what a general might say to a soldier. Nonetheless, the art of being a general is not the same as that of a rhapsode. Being so, how would Ion know what to tell a soldier? Besides being a rhapsode, he is also a general, though this does not mean all rhapsodes are generals and vice-versa, especially because a good general is not a good rhapsode and, again, vice-versa.
Ion had promised Socrates he would prove to be a master at Homer’s art, but in the end he could not keep his promise, for he is not that well informed because of art. It is divine inspiration that makes him go berserk and irrational.
All of this may sound very amusing, but we must ask this ourselves quite seriously: if only those who are specialised in a certain field may speak about it, why is Socrates so well informed about pretty much everything? Is it really that correct to justify the master’s knowledge and wisdom with the art of Philosophy? But are they not separated from each other? Then how does he know what to say or think when it comes to medicine, for instance? Medicine is not even a branch of the arts. It is all about science, any doctor can confirm that. Physicians do not believe in art, there is a one in a million chance that might happen.
A rhapsode can be a general and vice-versa, but one cannot be good at both. We do not get his drift, as many people, not only in Ancient Greece but all over the world could be specialised in one field alone and not be able to produce admirable results, just as much others could simply not be so well educated like the academics and create vivid work. Sometimes, experience is much better than debiting what books and scrolls have to offer. Should Humanity solely rely on specialisations, we would be sentenced to death on our own risk.
Also, we cannot forget a very important issue that will certainly discredit the master of logic, who trapped Ion in his own reasons: Socrates did not believe in the gods, and though the Muses are only demigods, they are divine nonetheless. How can someone say poets get their inspiration through a divine force if they are misbelievers? More to that, was Socrates a poet? How so, if he did not leave one piece of written evidence behind? And even if it were oral poetry alone, he would be a mere rhapsode, not the poet himself.
Finally, there is something bothering us all up until today: how can Socrates know how to govern a city, according to Plato’s Republic, if he never took the place of a ruler? It is believed Socrates did not enjoy neither the Athenian, nor the general democratic regime, as it was actually not flawless, imperfect. The conclusion is quite simple – Socrates’ words had always been distorted by his disciple, Plato, who could not stand up for his own convictions.
Whether we are playing in a musical or something a bit more classical like Greek tragedy or Romantic drama, we must be good singers, no matter the case, for if we can warm up to better enunciate, then we can also use the same exercises to keep our throats from getting hoarse and sing, miming the sounds we listen to, that is the actor’s job, to mime.


Tiago Filipe Lameiras
tlameiras@gmail.com

Tiago Lameiras was born in Lisbon, in 1990.
He has a Bachelor's Degree on Theatre – Acting (2011), taken at the Higher School of Theatre and Film of Lisbon. He is currently completing his PhD on Communication, Culture and Arts – Cultural Studies, at the Faculty of Human and Social Science of the University of the Algarve with a thesis titled TAT | Teaching Art and Theatre.
He is a member of the Theater Studies Research Center for the Faculty of Letters of the University of Lisbon.
He also has, among several publications, titles of his own such as Portvcale – A Epopeia Portuguesa da Contemporaneidade (Mosaico de Palavras, 2010), Viagem ao Centro de Ti – Romance Trovado (Chiado Editora, 2012) and A Mão de Diónisos – Evangelho Grego (EscrYtos | Grupo LeYa, 2013), as well as poetical collaborations in Chiado Editora's Poetry Anthologies Entre o Sono e o Sonho (Chiado Editora, 2012 – Present) and Sinapsis's Enigma(s) (Sinapsis, 2015).



Bibliography

ALIGHIERI, Dante, 1321 (1472 – 1st Printed Ed.), A Divina Comédia, intro., trans. and notes by Vasco Graça Moura, Lisboa: Quetzal Editores, 2011;

ALVES, Herculano et al., Bíblia Sagrada Para o Terceiro Milénio da Encarnação, Fátima, Leiria, Portugal: Difusora Bíblica, 2000;

ANTUNES, David João Neves, 2002, A Magnanimidade da Teoria: Interpretar a Ética em Teoria da Literatura, Lisboa: Assírio & Alvim;

BLOOM, Harold, 1998, Shakespeare: a Invenção do Humano, trans. José Roberto O’Shea, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001;

BONNARD, André, 1954, A Civilização Grega, trans. José Saramago, Lisboa: Edições 70, 2007;

DZIELSKA, Maria, 1995, Hipátia de Alexandria, trans. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio d’Água, 2009;

Von GOETHE, Johann Wolfgang, 1829, Fausto: Uma Tragédia, intro., trans. and glossary by João Barrento, Lisboa: Relógio d’Água, 1999;

HAGEN, Rose-Marie and HAGEN, Rainer, 2005, Egipto: Pessoas, Deuses, Faraós, trans. Maria da Graça Crespo, rev. Paula Nascimento and Cristina Oliveira, Cologne: Taschen;

HITLER, Adolf, 1925, Mein Kampf, trans. James Murphy, Mumbai: Jaico Publishing House, 2009;

HUGO, Victor, 1827, Preface to Cromwell, «Famous Prefaces» col., The Harvard Classics, 1909-14;

PAVIS, Patrice, 1996, Dicionário de Teatro, trans. coord. by J. Guinsburg and Maria Lúcia Pereira, São Paulo: Editora Perspectiva, 2001;

PLATO, Íon, trans. Victor Jabouille, Lisboa: Editorial Inquérito, 1988.

PLATO, A República, trans. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010;

RAMOS, Mercês Sousa, 2009, Teoria do Caos – Potencialidades na Modelização da Aprendizagem de Conceitos Científicos, Lisboa: Edições Colibri/Instituto Politécnico de Lisboa;

SAVATER, Fernando, Ética para um Jovem, trans. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Dom Quixote, 2005;

SCHULZ, Regine and SEIDEL, Matthias (ed.), 1997, Egipto – O Mundo dos Faraós, trans. Luís Anjos, Sandra Barros, Daniel de Carvalho, Cristina Conceição and Filomena Martins, Colónia, Alemanha: Könemann Verlagsgesellschaft, 2001.


[1] 1596-1650.
[2] DESCARTES, René, 1979, Discurso do Método, trans. João Gama, intro. and notes Étienne Gilson, Lisbon: Edições 70, pp. 31-32, 73-99.
There are a total of six meditations, each of them prosily correspondent to six days meditating, originally published in Latin and then translated to French by the Duke of Luynes, supervised by Descartes. It is never too much to review our own work when translated into other languages, especially those we master.
[3] ALVES, Maria de Fátima et al., 2008, Pensar Azul, Lisbon: Texto Editores.
According to most Philosophy textbooks, Empiricism is the opposite perspective of Rationalism. To make it easier to understand, it is all about nature and not necessarily reason (alone). Every species there are in planet Earth are considered to be an animal. However, humans are the only rational, hence the global domination and the separation from all the others, though we can obviously share our lives with some housebroken and even wild animals, depending on the quotidian, day-to-day lifestyles and world regions where people live. The empirical side of humans is thus related to their animal sphere. Nature «programs» living beings to react differently in several occasions, namely in regards to the food chain, when they serve either as predators or prey.
This is why many animals have the required abilities to catch and avoid getting caught. It is all impulsive, without the capability of thinking at least twice.
[4] Ludwig van Beethoven (1770–1827), also an important figure in the course of Western society, specifically in music, naturally, marking the transition from Classicism to Romanticism, composed through the course of the French Revolution his 3rd Symphony. It was originally dedicated to Napoleon for all the efforts he was continuously doing for the liberation of France. When the French «hero» proclaimed himself Emperor of France and its satellite territories (including a great deal of the Austrian Empire, should he become victorious in the Battle of Aspern-Essling) in 1804, however, the Maestro tore the Symphony’s title-page in anger and rage, quite natural in his peculiar temperament. He named it later as Sinfonia Eroica, still in honour of Napoleon.
Immortal Beloved, directed by Bernard Rose, starring Gary Oldman as Beethoven and Jeroen Krabbé as his personal secretary, Anton Schindler, Columbia Pictures, 1994.
[5]  But do we know what perfection actually is?
[6] This is not even the point, as there is no such thing as immortality for a living being to have been born since Earth started to bear life billions of years ago (the Universe itself has not sprung since forever).
[7] It may be so, but if it was not for our parents, would we exist either way?
[8] But is God perfect? If He is, why did He not avoid the existence of the rebel angel, Satan, in the shape of a serpent when it convinced Eve to eat the forbidden fruit from the Tree of Knowledge, thus producing the Original Sin and the expelling of Adam                and Eve from the Garden of Eden? Why did they fall in the sin of Man? Why is there sin and corruption after all in the world created in six days that «He saw it was good»?
If God does not make mistakes, does not err, why did He feel the need of washing out Mankind in the Great Flood, rescuing Noah and his family alone? And though he did promise not to destroy the world again with water, Sodom and Gomorra were not spared, again on the count of the sin of Man.
This point of the story here is interesting, as it shows that in over two thousand years of a Church that has its origins in Judaism, both sharing the same God and Saviour/Prophet/Messiah, Jesus, it takes a man, allegedly imperfect, though he is representing God (Yahweh, in Hebrew) on earth, the Pope, to finally ponder upon marriage between people of the same sex.
And why is Abraham challenged to sacrifice Isaac? Why did God make a pact with Satan to drive Job mad? Why is there the need of Him testing Man’s faith and loyalty? If the people of Babel wanted to build a tower so they could be closer to God, why did He get jealous of their abilities, changed their languages and scattered them all over the world, which, by the way, shares neither a sole faith nor a sole deity?
Finally, why did he sacrifice his own son to a point where he asked «Father, why have you forsaken me?».
[9] British expression meaning someone irrelevant in the scientific community is defying the name of the great.
[10] Portuguese-American neuroscientist/neurobiologist, b. 1944.
[11] Lisbon: Europa-América, 1995, awarded the Prémio Pessoa.
[12] Vide note 11 for further reading.
[13] Lisbon: Editorial Caminho, 1991.
[14] Id., Ibd., 2005.
[15] Id., Ibd., 2009.
[16] José e Pilar, directed by Miguel Gonçalves Mendes, starring José Saramago and Pilar del Río as themselves, JumpCut, O2, El Deseo, 2010.
[17] Lisbon: Editorial Caminho, 1982.
[18] The use of «much» and not «many» is deliberate; not to be confused with the possible interpretation of «how “many”».
[19] We highlight the paradox.
[20] Lux Ferre in Latin, «the bearer of Light».
[21] Id.
[22] «Man is a political animal».
[23] Unavoidable paradox.
[24] Hence our introduction to this.
[25] Idem.