quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Desahogo

Esta questão tem vindo a incomodar-me há pouco menos de uma semana. E como não posso falar abertamente sobre isto com ninguém, tenho de escrevê-lo, ainda que sem começar com «querido diário». Ainda tenho respeito por mim próprio.
Li há uns quantos dias, num local concreto, embora sem deliberadamente mencioná-lo, qualquer coisa como ser um problema ficar preso ao passado. Não significa necessariamente que este passado tenha de ser partilhado com alguém que desejaríamos ter por perto. Trata-se também de habitarmos o nosso eu em liberdade. Este direito inalienável e incondicional não deve ser impeditivo da sensação de se pertencer a alguém. Creio que é uma óptima e saudável forma de se estar preso, mas nunca no mau sentido, até porque fazer parte de outrem pode ser ainda mais libertador do que percorrer um determinado troço a sós, especialmente o caminho da vida.
Para uma pessoa da minha idade, falar em vida ao mesmo nível de um sábio ancião pode tornar-se em algo sensaborão, senão ridículo. Simultaneamente, sei que já vivi muito. Este é um advérbio quantitativo, porque ilustra uma imensa quantidade de eventos que já atravessei, ainda que o período de tempo seja bastante curto. Há épocas assim, na nossa vida. Um ano inteiro e talvez um pouco mais do seguinte durante o qual há que tomar decisões preponderantes que, esperançosamente, definirão um novo rumo no que à viagem ao centro do próprio diz respeito.
Existem variadíssimas escolhas que podemos colocar em prática para melhorarmos o percurso. Deambulamos de pés desnudos sobre o solo da Floresta Negra, agreste, bicudo, escorregadio, rochoso e inclusivamente fatal, se não pudermos enlaçar a mão na do outro, que, quem sabe, faria ideia de levar-nos a passear sobre a areia húmida da brisa nocturna, lá onde o mar vem encontrar-se com a costa, perpetuamente banhando-a, inúmeras vezes seguidas.
A dita frase, acima mencionada e que fui buscar à autoria de outrem, metamorfoseando-a com recurso a vocábulos meus, tem vindo a inspirar-me nos últimos dias. Não me recordo da data concreta em que com ela me deparei, mas o factor temporal não é relevante neste momento. Em procurando fazer bem e ainda que estando de consciência tranquila, errei. Quero dizer que sei que o que fiz não foi por mal, mas também não resultou em bem. Da outra parte, fui iluminado com duras palavras sobre a repercussão dos meus actos. Sim, foram expressões duras. Frias, também. Mas não me sinto ofendido, a culpa foi minha, fiz por merecê-las. Não me parece que tenha pisado o risco. Mais do que isso, transpus o limite por completo. Argumentei que a reacção me provocava lamentação, o que é verdade. Mas expliquei também que não era no clássico sentido de como quem diz «tenho pena, eu expliquei-me perfeitamente, quem te disse que era assim que devias ter interpretado o significado das minhas palavras, de modo tão negativo e desrespeitoso?». Porque não é um problema de interpretação, mas sim de expressão. Analogia teatral, o público tem de entender a expressão do actor, mas se este não se exprime com clareza, a responsabilidade e assumpção das consequências que daí decorrerem são inteiramente dele.
Foi assim que, embebida na verdade, devolvi a minha resposta, clarificando que era comigo próprio que agora experimentava uma sensação de tristeza. Aproximei-me erradamente. Não lhe peguei na mão, mas antes no braço, com ignorância completa pela antiga expressão artística de que, por vezes, «menos é mais». Pensando no que fiz, mais foi mais, só que inteiramente dirigido para uma conotação negativa, senão péssima.
Efectivamente, não nos conhecemos bem. Sabemos coisas muito básicas, um sobre o outro. Mas não foi isso que me impediu de me aproximar. Eu sabia que tinha de dar o primeiro passo para essa primordial troca de palavras, infelizmente interrompida abruptamente por motivos alheios a ambos. Ter-me-ia arrependido para todo o sempre, se ainda hoje não tivesse digitado um «Olá!», simples na forma, pleno no significado.
Eu, que creio sentir-me justamente orgulhoso de saber articular as palavras, mencionando frequentemente termos próprios dos textos clássicos, não soube refrear o ímpeto, para mal dos meus pecados. Não calei a língua em silêncio ou, no caso, os dedos em movimento. Os vocábulos que trespassaram a barreira dos meus dentes ou, no caso, os caracteres que evadiram as pontas dos meus róseos dígitos, não se contiveram, tal foi (ou continua a ser) o meu deslumbramento por aquela adorável visão.
A despedida não foi menos gélida. Demasiado definitiva, e por isso preocupante. Como uma estaca que me penetrou o coração e assim o deixou, rasgado bem no centro, embora congelado, mantendo-o vivo no interior deste entristecedor glaciar, subtilmente bombeando.
Pedi perdão, mas reinou o silêncio. Faz-nos bem não falar demasiado, é o que nos custa entender, na maior parte do nosso tempo. As feridas precisam disso mesmo, de tempo, para sararem. Por muito que eu goste de ser doce, pede-se espaço e um pouco de ar fresco para ajudar ao fecho do golpe infligido.
Se uma estrela dos desejos tiver de surgir no céu escurecido, lá no alto da cúpula celestial, farei de imediato o meu pedido: «não te despeças de mim tão cedo; ainda nem sequer me apresentei».

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