domingo, 27 de setembro de 2015

O Encontro (2015) | 3.ª Parte

   - Então, onde é que vamos?
   Respondi apenas que era surpresa, retorquindo posteriormente no remate se-guinte que, se era para proferir com todas as letras o nosso destino, então a surpresa não serviria de nada. Como seria quando chegasse o Natal e tivesse um embrulho em seu nome debaixo do pinheiro sintético? A criança que existe dentro de nós, porque esta nunca nos abandona, jamais, não vale a pena querer ser racional por completo, não é da nossa natureza, há-de sempre pressionar a curiosidade para que saiba de antemão que mistérios e segredos são esses que aqueles que nos amam têm para nós, entrando, se necessário for, em modo de chantagem, mas no bom sentido, com certeza, como seja ameaçar que não há mais beijinhos para ninguém se não dissermos. Mas a verdade é que, se soubermos esperar e se confiarmos no bom gosto do outro, que nos conhece melhor do que ninguém, essas ameaças caem por terra e muitas vezes acabam por se inverter em mais de cem por cento, querendo dizer que o recompensamos com muito mais do que beijinhos. É só permitir que o coração dialogue com a mente e o nosso agradecimento por ele ou ela ter pensado em nós e no nosso melhor será o mais criativo de todos.
   Adivinhando desde logo que da barreira dos meus dentes palavra alguma tres-passaria (subtileza trágica), não mais tornou a insistir. Nem me ameaçou de modo nenhum. Sempre que procurava fazê-lo, acabava a rir-se, olhando-me as íris em busca de algo que lhe desse a entender que eu acreditava, mas a minha resposta era sempre a mesma, tanto que já a citava de cor, como qualquer actriz profissional:
   - Já sei, já sei... andas nisto há muito tempo!
   Se era verdade, para quê negá-lo? Não é que o não fizesse de vez em quando, mas era só para fazer género e vê-la rir-se da minha expressão patética de falsa soberba.
   Por conta dos nervos e do cansaço, os seus olhinhos, no sentido de serem doces, porque em tamanho eram grandes, belíssimos e luzidios, iam-se fechando. Questionei-a, então, procurando saber se tinha sono e se preferia antes ir para casa descansar um pouco. Este é o sentido mais literário da minha pergunta, porque, e em verdade vos digo, sem traições, os termos com que a coloquei foram muito mais pueris, ou seja, se queria "fazer óó". Não me julguem, é ela que me derrete assim, como chocolate num dia quente de Verão. Atirem a primeira pedra ao charco, se nunca antes o enunciaram desta forma.
   - Não, Ti, só estou muito cansada, mas feliz por estares aqui, mesmo muito.
   E encostou-se ao meu ombro, repousando sobre este a sua cabeça. Muitas vezes era apenas capaz de pensar que os seus cabelos só podiam ser mágicos, não só pelo tom variável que assumiam consoante a luminosidade, algo que lhe gabava frequentemente, mas pelo olor perfumado que lhes era tão natural. A minha lisonja constante, relativa aos seus atributos enquanto mulher, pode parecer por vezes cansativa ao olhar, mas não é por mal que o faço, pelo contrário. É porque é a mais pura das verdades, e mal nenhum não existe em dizer à nossa cara-metade o quanto lhe queremos. Enquanto isto, entrelaçou também os dedos da mão direita com os da minha mão esquerda, e deixou-se estar, só com a firmeza necessária para se sentir segura, certa de que jamais permitiria que algum mal lhe acontecesse.
   Os motoristas da Uber são bem mais simpáticos do que os regulares taxistas, e portanto não é de estranhar que eles mesmos iniciem conversa com os passageiros. Percebi pelo retrovisor central, no qual vi o seu olhar reflectido, que era uma pessoa simpática e jovial. Embora não tivesse sido capaz de perceber o conteúdo da minha conversa com a minha Bonequinha, há termos linguísticos, e não necessariamente contidos na fala, que são universais, independentemente da zona do globo. Por isso deixou-se ficar em silêncio, deixando apenas transparecer um sorriso, quase como que cúmplice.
   O trânsito estava ligeiramente caótico. Mesmo circulando em avenidas tão lar-gas quanto aquelas, o espaço não é suficiente para milhões de carros que sobre as mesmas podem rolar em apenas poucas horas. Enquanto passávamos entre o observatório e o famoso letreiro, numa das principais artérias, fui olhando o exterior. Quase que não havia zonas escurecidas, a iluminação proveniente de várias fontes eléctricas não o permitia. Desde a minha primeira visita à cidade, na companhia da minha melhor amiga, cidadã nacional, embora não sendo originária deste estado, que me apaixonara totalmente. Podem até dizer que é snobismo ranhoso, mas a impressão que tenho vindo a construir cada vez mais no meu pensamento é a de que a Europa está a tornar-se demasiado empertigada, e não só com pessoas oriundas de outros continentes, mas também com os próprios europeus. Afinal, de civilizados os habitantes nascidos neste continente têm muito, mas a maior falha acontece no sentido cívico. Não temos o direito de negar asilo a refugiados, se alimentámos a guerra que provocou a sua partida, muito menos com o nosso histórico. Os europeus, enquanto berço civilizacional do Ocidente, não se escusaram de eliminar pelo menos três civilizações americanas, entre outras tribos menores, cuja execução ficou a cargo dos britânicos, a Norte. É claro que Astecas, Maias e Incas, distribuídos pelo Centro e Sul do Novo Mundo, apenas atingiram o estatuto imperial por sacrifício de tribos isoladas, pelo que matar para conquistar não é nada de novo, de todo. Chega a ser pré-histórico, inclusivamente.
   Então porquê apaixonar-me por uma Menina europeia como eu, e não de outro continente? Não são os traços ancestrais, demográficos, étnicos, geográficos, políticos ou religiosos que definem uma pessoa. Funcionam em modo de contributo, sim, mas a pureza contida no coração não é tão superficialmente moldável. É uma impressão que só a natureza pode deixar marcada e inscrita na mais profunda cavidade de cada um. E foi isso principalmente que emitiu o sinal necessário. Não precisámos de conversar extensivamente para incorporar a sua personalidade. Não é ocasional que, quando alguém nos elogia, sintamos que estão a pintar um quadro demasiado bonito, com recurso ao nosso arco-íris interior como fonte de tinta, crendo que não somos tão coloridos quanto isso para desenharem um Sol bem brilhante e sorridente num dos cantos superiores, junto à aresta da moldura, mas não é essa falta de confiança que vai ditar a percepção que temos da personalidade dos outros. Não, ninguém é perfeito, todos temos defeitos. É isso que nos dá vida, que alimenta uma relação. Alguém com aspectos contrários aos nossos é quem falta para completar-nos, nós que vivemos com uma metade só e estamos condenados a procurar o ente querido, separado de nós originalmente pelo poder de Zeus, mas também pelo medo, não fossem os humanos virar-se contra ele e restantes olímpicos para tomarem o lugar que é seu por direito. O negro também é uma cor, mas os defeitos que nos são característicos não passam necessariamente pelas trevas. Pode nem se tratar sequer de um cinzento carregado, mas talvez de um tom mais esbatido. E sempre que um de nós se sinta azul, o outro estará lá para complementar a paleta.
   Estando o caminho um pouco mais livre, vamos avançando, até que chegamos enfim ao destino. O motorista desliza o indicador no seu telefone, concluindo o percurso e cessando a cobrança pela viagem. Bastante sensível, aguarda que acorde a minha Bonequinha, ao invés de escorraçar-nos dali para fora. Levanto com carinho e gentileza o seu queixo e encosto a minha fronte à sua. Chamo-a pelo diminutivo e digo-lhe que chegámos. Abandonamos o veículo e os seus olhinhos prendem-se à magia daquele lugar. Puxa-me do braço para alcançar uma das minhas maçãs-do-rosto e aí deposita um beijo profundo, onde tenho a certeza de que o batom terá ficado marcado. É quase como se o cansaço lhe tivesse passado de súbito. Há vida em si uma vez mais.

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