sábado, 26 de setembro de 2015

O Encontro (2015) | 2.ª Parte

   Ainda não comprei um carro. Confesso que seria muito mais agradável fazer a viagem a nível particular, mas trazer o meu primeiro a partir de outro continente era absolutamente inexequível e, por agora, devo amealhar o mais que puder. Não é que o orçamento me chegue à risca, mas apenas eu recebo salário e não quero endividar-me para já. Não posso transformar-me num fardo público para o Estado, é o que a Lei diz, para além de que o meu visto não é ainda de residência permanente. Mas já falta pouco para alcançá-lo. De qualquer das formas, é óbvio que já tratei de pedir equivalência à minha carta de condução original. Nem que fosse apenas para fazer género, e a questão é essa, no fundo, mas restrita apenas ao entretanto. Depois, logo se verá.
   Existem outras alternativas, agora que penso nisso. Posso alugar uma viatura. Aqui, praticamente ninguém conduz com transmissão manual. É neste momento que me recordo de um expatriado que, nos tempos de juventude, percorreu toda a Europa e acabou por escolher a minha terra-natal como local definitivo onde ficar. Dizia ele, na sua língua e bastantes vezes: "I'm lazy...". Pois sim, sou capaz de entender a sensação. Seria um estereótipo dizer que todos os habitantes desta zona do globo são exactamente iguais em iniciativa, mas não é de todo o caso. Conheço pessoalmente quem tenha até demasiado ímpeto, quase que irrefreável, mas numa altura em que mecenas algum está disposto a oferecer a mão, senão a troco dos devidos interesses, claro está, não existe qualquer maneira de suplantar as dificuldades que habitualmente se afiguram a gente dotada com os apropriados valores éticos e morais. Por isso vou prestando eu mesmo algum auxílio, dentro das minhas possibilidades. Para além disso, como referi supra, tenho de governar não só a mim, mas também a minha Menina. Trabalha, mas não pode receber salário se estiver a estudar em simultâneo. A Secretaria de Estado da Administração Interna, que tutela os Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, disponibiliza imensas categorias de vistos, mas cada qual reflecte as suas burocráticas limitações. Obter um visto de estudante acaba por ser um negócio justo para quem pode ter uma vida num país diferente sem possibilidade de remuneração. Paga primeiro ao Estado, recebe depois, mas não necessariamente a partir de dinheiros públicos; tudo depende da entidade patronal, inclusivamente a justiça do trato, se será digna de assim ser designada, com base no equilíbrio entre o que se pagou no passado e o que se vence no presente.
   Mas posso também chamar um Uber pelo telefone. É mais prático. Não o faço porque esteja à procura de problemas ou com vontade de participar numa cena real de pancadaria com taxistas mal-educados e de péssimo humor. É um facto, parece que mesmo noutro ponto qualquer do globo, a imagem de marca mantém-se. No Reino Unido, por exemplo e pelo contrário, nunca apanhei taxistas mal-humorados. Não é de admirar. Eu, que levo a carteira talvez um pouco mais abastecida do que o costume, só por conta das necessidades mais imediatas que não aceitem cartão ou autocarros de dois andares que me peçam um Oyster card carregado, certamente esvaziá-la-ei para atestar a dos motoristas. Primeiro, porque assim que vislumbro as estradas a partir da janela da cabine da aeronave, vejo faróis e retrorreflectores vermelhos na faixa de rodagem do lado esquerdo, enquanto os bi-xénon amarelos e brancos iluminam o lado direito, fico logo confundido. Não fosse estar escrito no chão o lado para onde devo olhar junto à passadeira, provavelmente trocar-me-ia por completo, acabando atrás da viatura num único salto. Depois, até alcançar o hotel, já bastante de noite e em caso de greve inesperada, com certeza, estando Heathrow na extremidade da cidade, o caminho é longo e é tão fácil enganar o pobre coitado do turista com recurso a "atalhos" que não encurtam, mas, muito ao revés, só aumentam ainda mais a relação espaciotemporal que existe entre uma viagem cansativa, ainda que curta, mas voar é assim mesmo, e cama feita de lavado onde repousarei o meu inerte cabedal. Mas parece que, quanto mais cansado, menos durmo. As crianças não têm problema nenhum; depois de andarem a correr de um lado para o outro durante o dia, especialmente em copos d'água ou festas de baptizado, dormirem doze horas seguidas revela-se apenas como mais uma fatia de bolo de chocolate. Agora eu, que escrevo e puxo pelos miolos, talvez derramados no interior do meu crânio, uma imagem inspirada n'A Celestina, atribuída ao raciocínio cáustico de Fernando de Rojas, activo durante duas semanas (não sou particular crente dessa declaração, uma vez que eu próprio idealizei um livro em cinco dias, mas o registo pareceu-me ser demasiado maníaco e não avancei para a publicação), que queria poder conseguir dormir uma noite seguida, sinto que o meu subconsciente é invadido por aquilo a que chamam As Intermitências da Morte (mais uma piada literária).
   Definitivamente, talvez seja melhor chamar um Uber. É mais rápido. Talvez não mais barato, mas não faz mal. Não olho a meios para alcançar os fins. Esta frase tem o condão de habitualmente ser empregada em contextos linguísticos particularmente duvidosos, mas se me é permitida a explicação, neste caso específico, não olho a meios, que é como quem diz dinheiro, para alcançar os fins, que são muito concretamente fazê-la sorrir, sentir-se feliz e, em especial, amada. Não é de todo necessário investir economias para agradar a uma mulher. Verdade, concordo em absoluto, mas prefiro confiar nos dotes culinários de profissionais do que nos meus para que a minha Menina possa sentir-se satisfeita de estômago. Além disso, não tenho também um quintal ou um terraço particulares. Conto vir a tê-los num futuro de médio-prazo, quiçá, mas por enquanto estou limitado nesse sentido. Significa isto que não possuo um roseiral. Logo, tenho de ir à florería mais próxima e pedir que lá me façam um botão para a lapela do casaco, talvez com recurso a um pequeno alfinete, para que a rosa vermelho-sangue, do mesmo tom do batom que repousa sobre e se une aos seus apaixonantes lábios num brilho natural, já se sabe, não deambule no interior do bolso e rompa as suas formosas pétalas. Faço sempre questão de escolher uma das rosas mais vivas e florescidas. Flor por flor não me agrada. Se vou oferecer alguma coisa, então que seja nas devidas condições. Menos do que isso, e é uma ofensa. Talvez não para ela, que tem um coração doce e apreciará decerto o gesto, mas para mim, que não a enalteci como senti que deveria ter feito.
   Enquanto aguardo junto à entrada para o Bowl (o espectáculo vai ser ao livre!, como no anfiteatro da internacionalmente reconhecida Fundação para lá do Atlântico...), vou entrando na aplicação, já de crédito confirmado, e procuro condutores disponíveis na zona. Há sempre alguém livre para cobrar entre dez e vinte unidades monetárias extra no final de cada semana. Ainda para mais, hoje é sexta-feira, é conveniente. Eis que de súbito, depois de convocar o motorista, ouço a pureza da sua voz percorrer-me o ombro e chegar ao meu ouvido:
   - Ti!
   Algo na minha mente dispara, depois de instantaneamente assimilar aquele chamamento, e logo pela minha sílaba favorita. O coração acelera, sinto-o reverberar no interior da caixa torácica. É um facto facilmente explicável. Estar apaixonado e amar a sério compreende sempre entusiasmo por partilharmos o lado íntimo da nossa vida com quem o mesmo coração escolheu. Não é assim tão atractivo, pelo menos no que me diz respeito, não olhar a obstáculos para conquistar a donzela e depois deixar-se encostar ao garantido. Isto porque, surpresa, cortar o oxigénio à chama provocará a sua extinção. Portanto, não, não é garantido que uma relação dure se pelo menos uma das partes não se preocupe em mantê-la. Eu não me preocupo, preocupar-te-ás tu por que carga de água? É muito triste, mas acontece.
   Por isto mesmo, eu, em me virando de frente, não dou conta de que o queixo me descaía. Secam-se-me os lábios, humedeço-os com a ponta da língua irreflectidamente. Ela está... como é que se descrevem visões que não fomos ensinados a aguardar no contexto da vida real, senão apenas em sonhos e histórias fantásticas? Por sua vez, já sabe quais são os meus nomes carinhosos mais comuns, mas não é por repeti-los ocasionalmente que se cansa ou os considera chatos. É simplesmente o meu jeito de me dirigir a si com ternura. Direi apenas, para que reste a ideia, que era a minha Bonequinha. E isso terá de ser suficiente para agradar quem por aqui vagueia, independentemente de ter um propósito ou caminhar errante, pela errância errando.
   Pergunto-lhe como correu o ensaio:
   - Não estive muito segura no monólogo...
   Teria sido alguma branca? Com tanta coisa em que tem de pensar simultaneamente...
   - Não, foi o tom... senti que deixei cair um pouco a cena, e ainda ontem tinha saído tão bem...
   Assegurei-a, é claro, de que não havia problema. Os ensaios-gerais para isso mesmo serviam. Errar hoje, rebentar com tudo amanhã. Seria pior se se tratasse de um exercício de três dias. Nervos na estreia, mas rebentamento conferido; moleza no segundo dia, uma superstição já cansada de ser comprovada; saudosismo na última noite, com as despedidas e a cessação da energia construída durante meses, apenas para ser demonstrada num total de quatro horas e meia, isto multiplicando. É assim mesmo a nossa vida.
   O motorista estava a aproximar-se. Reconfortei-a uma vez mais, coloquei-lhe um beijo carregado sobre os cabelos perfumados, e abri-lhe a porta do carro.
   - Não vamos para casa de transportes, hoje?
   A minha resposta foi, quase num sussurro, que não iríamos para casa.


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