sábado, 26 de setembro de 2015

O Encontro (2015) | 1.ª Parte

   Esta noite há ensaio-geral, e está marcado para as dezanove horas. Onde vivemos em tempos, a prática comum para espectáculos em cena era marcar o seu início entre as vinte e uma horas e as vinte e uma horas e trinta minutos. Nem mesmo em pleno Inverno, quando o céu entra em depressão, chorando os seus incontáveis milhares de milhões de lágrimas, enregeladamente suspirando sobre o ocasional transeunte ou mesmo ambos, num cenário de indubitável e completa desgraça, ao qual o madrugador crepúsculo vespertino vem adicionar tons tenebrosos, as horas destinadas à actividade cultural são trocadas por outras mais confortáveis a alguém que teve um dia trabalhoso e que gostaria de experienciar um momento recreativo por sua alta recreação, embora desejando mais tarde, depois de abandonar a sala, eventualmente tomar um chá de eucalipto para se aquecer e entregar-se a um bom romance, entrelaçado no cobertor, sobre o sofá, junto à lareira, se de uma dispuser. Não. Efectivamente, quando o espectáculo terminar, subtraindo o tempo que se demora a chegar a casa através de transportes públicos, táxis incluídos, será impossível relaxar e atrair a vinda do sono, senão mesmo aquecer primeiro, e só depois mergulhar debaixo dos lençóis para, ó triste fado, ter de acordar abaixo dos limites de repouso recomendados para um adulto. Somos demasiado jovens para acordarmos com cinco ou seis horas de descanso e começarmos a encovar os olhos nas suas órbitas. A um jovem adulto, como eu e segundo a opinião de algumas amigas, até que é charmoso para um homem carregar uma ruga de expressão ou duas, independentemente da tenra idade. Significa que sabemos sorrir, e não é só com os lábios, pois que sorrisos desses não são verdadeiros, se não convencerem os olhos a sorrir consigo também. Do cabelo grisalho, nem se fala, mesmo que seja um pequeno fio, oculto entre o negrume das têmporas, brilhando apenas consoante a luminosidade solar de cada dia.
   Mas a nossa rotina já não é esta. Deixámos de ir ao Teatro na capital e já não são estas as horas a que o frequentamos, no seio de toda aquela gente que conhecemos, e, na sua maioria, até bem demais, absolutamente tóxica e enodoante para o bom nome que a nossa arte um dia carregou, ou pelo menos assim gosto de pensar que aconteceu, uma época em que não tenhamos sido colocados à margem por querermos dar corpo e voz à arte, uma vida, enfim, permanecendo na pureza dos nossos corações, tal como começaram a bater depois de formados no ventre, impermeáveis à corrupção e ao vício, em especial de nos envenenarmos mutuamente, uns contra os outros, numa tentativa pútrida de nos aniquilarmos enquanto mensageiros da paz pela cultura de uma sociedade, apenas para nos marginalizarmos cada vez mais, por nós próprios, e perdermos o mérito que nos seria normalmente devido e, como bónus, reconhecido.
   Agora habitamos um outro estado, somos alienígenas legais, com vista para o Pacífico e um cais que penetra o horizonte, quase como se fosse decididamente capaz de nos levar àquele aparentemente intocável ponto onde o mar beija o céu. Não é que uma cara-metade tenha de mudar pela outra; se nos amamos, é tal como somos. Não tenho o direito de querer construir ninguém à minha imagem, não sou narcisista. Para isso, ver-me-ia ao espelho, e mesmo assim é só quando o asseio o exige, não por admiração própria.
   São quase vinte horas e trinta minutos. O ensaio há-de estar a chegar ao fim. Vou levá-la a jantar na Baixa, mas ainda não sabe. É surpresa. Xiu...!

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