segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O Encontro (2015) | 4.ª Parte

   Acabávamos de chegar a um dos restaurantes mais luxuosos da cidade, o Wolfgang Puck Bar & Grill, na W. Olympic Blvd. Era uma escolha agradável para qualquer situação, independentemente do seu cariz. Incorporava vários géneros de cozinha de todo o mundo e tinha um aspecto absolutamente fenomenal. Não admira que a Bonequinha tivesse arregalado os olhinhos em espanto. Inquiri-a relativamente ao gosto que tivera quando escolhi o Wolfgang, procurando saber se fora uma boa opção.
   - Estás a brincar? Este sítio é lindo!
   E era, efectivamente. Aguardámos pelo mâitre para nos encaminhar para uma das várias mesas. Optámos pela mesa do canto, não necessariamente mais resguardada, porque havia muitas pessoas próximas de nós, mas não exactamente coladas umas às outras. De todos os modos, podíamos pôr-nos à vontade, ninguém falava Português e, se porventura apanhassem um ou outro vocábulo, com certeza diriam ser Espanhol e poderiam eventualmente tentar perceber sobre que estaríamos a conversar, mas lá para o meio de uma qualquer frase, tornar-se-ia imperceptível, até para os latinos. Com a experiência que temos de Espanha, já se sabe que ninguém se dá ao trabalho de comparar uma língua com a outra e acaba por dizer "perdón, pero no te entiendo".
   O ambiente luminoso da sala encontrava-se reduzido, dependendo essencial-mente da curta projecção da chama de cada uma das velas acesas. De um lado da mesa, um longo e contínuo sofá, mais confortável, para o qual a dirigi. Só não pude executar o cavalheiresco gesto de afastar o assento para deixá-la acomodar-se porque não se tratava naturalmente de uma cadeira, nem tão-pouco era amovível. Compensei essa falha de etiqueta masculina, ainda que não deliberada, auxiliando-a a remover o casaco e a dobrá-lo sobre o banco almofadado, assim como com o ajuste da mesa mais para perto de si, o que me faz recordar neste momento que ela é Pequenina. Talvez por isso me desse mais vontade de agarrá-la como a um ursinho de peluche para dar-lhe beijinhos e fazer-lhe carícias. Sou assim mesmo, um coração mole. "Diz que" não é defeito, é feitio. Nunca tive gosto em deambular pela maldade, falta de tacto, ausência de carinho, défice de ternura. Se esta Bonequinha é quem mais amo na minha vida, merece lá agora que entre num espírito aterrorizante, de ansiedade. Eu próprio não mereço, quanto mais passá-lo à pessoa mais importante da minha vida. Não conseguiria fazê-lo, sequer, ainda que tentasse. Daquele arco-íris que todos nós trazemos no nosso interior, apenas prefiro o negro para a minha forma de vestir. Acho que peças de roupa mais escuras ficam-me bem, mas não é nada de mais, porque esta é praticamente uma verdade absoluta, sendo que é aplicável à maioria das pessoas.
   Depois de analisarmos a carta deixada pelo mâitre, fiquei inclinado para a secção das pizzas. Poder-se-iam perguntar, "mas para quê comer pizza num restaurante tão fino quanto este, quando o que não falta para aí são restaurantes de comida rápida que servem exactamente o mesmo?". Pois bem, servem exactamente o mesmo, se nos orientarmos pela designação. Já a confecção dos pratos entre os referidos lugares mais comuns e esta casa nada tem a ver. Só o empratamento, modo de apresentação, etc. valem o que se paga pelos mesmos, e não fica muito mais caro do que numa cadeia ordinária (no sentido positivo de «habitual», não em tom pejorativo). Perguntei-lhe então o que é que gostaria de degustar.
   - Vejo aqui tanta coisa boa, não tenho bem a certeza do que vou querer... mas podes escolher tu, se não te importares. O que preferires está bom para mim.
   Chamei-lhe Tonta. Bem sabe que não é por mal, mas a intenção mais clara deste... digamos, «adjectivo» teve como seguimento a explicação que lhe dei, ou seja, que aquela noite era dela e que podia fazer como mais lhe apetecesse. Não é que se tratasse de uma noite excepcional no que a esse aspecto diz respeito, pois que todos os dias tinha liberdade de fazer o que bem entendesse, e não era eu que tinha de lha conceder. Já antes o disse, de novo o repito, pode ser a minha Bonequinha, mas não é minha «propriedade». Estamos a falar de uma pessoa, não de um objecto para usar por entretenimento e depois arrumar a um canto, numa prateleira mais alta, coberta de pó, ficando lá esquecido. E isto quando os objectos ainda são arrumados. Há quem não goste de sentir que ainda estão por perto e que podem cair a qualquer momento lá das alturas, quando uma pequena brisa, embalada pela corrente de ar vinda da janela aberta, os empurrar rumo ao chão, cujo estrondo assemelhar-se-á a uma pancada forte sobre a cabeça, relembrando a triste verdade. Mas então será já tarde demais. Já o objecto ter-se-á habituado a não ser desejado, e por isso não quererá voltar a ser usado, só para ir parar ao mesmo solitário local. É um ciclo para o qual ninguém está virado, de todo.
   Acabei então por sugerir o que o paladar me incitara a preferir, uma pizza com Prosciutto di Parma, Basil Pesto, Oven Roasted Tomatoes e Olives. Os últimos dois ingredientes poderiam ter sido citados com a devida tradução, mas alturas há em que momentos de snobismo não são fáceis de conter. Para beber, dois copos de Cabernet Sauvignon, tinto, doce, simplesmente maravilhoso. Agora já podíamos beber ambos, se se tratasse de há uns anos atrás é que ficaria por minha conta comprar a borbulhosa e agradável cevada, mas só para beber em casa. O passaporte não engana, "já dizia o outro". Havia cerveja ali servida também, claro, mas isso podia ficar guardado para outro dia qualquer. Aquilo sobre que conversámos naturalmente só a nós diz respeito, mas posso adiantar que abordámos Arte, na maioria do tempo, mesmo depois de chegar a pizza repousada num suporte sobre uma lamparina, para não arrefecer. Luxos destes não se encontram em todos os lados. No seio do contexto da Arte, Teatro. Era o assunto que mais nos interessava, não só académica, como profissionalmente. Falámos sobre nós, enquanto pessoas, enquanto amigos, enquanto secretos namorados. Secretos, justamente porque a atracção que se gerava entre ambos era evidente, só não via quem não queria.
   Depois de nos satisfazermos ambos, cada um com uma metade simetricamente repartida, tornei a chamar o mâitre para pedir a sobremesa. Disse-lhe que não valia a pena trazer a carta.
   - Come tu, se quiseres, eu já estou cheia, mas obrigada...
   Sorria. Era um sorriso algo envergonhado, devo confessar, mas genuíno, como sempre.
   Tendo aperfeiçoado a minha falta de jeito para trabalhos manuais, a sobre-mesa de surpresa vinha aí. Faltava-lhe a classe de vir colocada sobre uma bandeja, mas tenho perfeita noção de que já seria pedir muito ao pessoal da casa. Todo o complô tem limites, mas os que têm as melhores intenções. Era um embrulho majestoso, com laçarote incluído, no mesmo tom misterioso dos seus cabelos, consoante a intensidade da luz, já se sabe.
   - O que é isto, Ti...?
   Os olhos arregalavam-se-lhe em confusão e surpresa. Respondi, muito sucin-tamente, que era a sobremesa. Vinha era especialmente embalada e precisava de ser aberta. O que a Bonequinha encontraria no seu interior fá-la-ia ascender aos céus, só para trazer estrelas no lugar das íris.



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