Era uma vez uma pequena casa junto do mar.
A casa, para além de ser pequena, era pintada de branco como a cal, e a brisa marítima fizera-lhe o favor de a deixar ainda mais branca, ao contrário do que seria de se pensar do efeito de erosão que o sal tem, levado ao colo pelo sopro do vento. Na sua fachada, cuja direcção se opunha ao sentido das ondas que avidamente rebentavam contra a sua cara-metade arenosa, havia quatro janelas, duas de cada lado de uma porta. Tanto a porta como as suas primas afastadas, as janelas, estavam pintadas de azul, lembrando uma vila de pescadores que não distava em muito desta casa. Cada uma das janelas tinha quatro vidros, separados por uma cruz de madeira. Pendurado na porta estava um batente que as visitas deveriam utilizar para avisar que era pacientemente aguardada a sua recepção. As telhas eram vermelhas e estavam todas muito bem alinhadas, sem necessidade de uma reparação para um tempo próximo.
Ora, dentro da casa vivia um menino. Por estranho que pareça, vivia sozinho, não tinha mais ninguém que o acompanhasse no seu crescimento saudável, porque a sua família era de pescadores e, infelizmente, todos haviam já desaparecido em momentos diferentes em que o mar se mostrara muito maldisposto, não tendo qualquer sentido de misericórdia ou de compaixão para com uma família que apenas o incomodava para ir buscar o seu sustento, o peixe que se vendia no mercado, na lota, e o peixe que se pescava para cozinhar dentro de casa e assim fazer uma boa refeição.
Pode dizer-se, portanto, que este menino aprendera a viver a sua vida sozinho, longe de figuras principalmente femininas, pois o avô perdera a sua mulher, a avó, ficando encarregada de cuidar do pai, que, por sua vez, ficara encarregada de tomar conta do menino, uma vez que a mãe igualmente desaparecera muito cedo. Era uma sucessão de perdas muito tristes e completamente inapropriadas para crianças pequenas que necessitam, mais do que nunca, em tenra idade, de ambos os pais presentes, de preferência ligados um ao outro sem raiva, sem discussões ou sem brigas, todas elas sem sentido e desnecessárias, porque discutir com alguém que amamos, seja por que razão for, nunca fará sentido.
Felizmente para o menino, aprendeu em bom tempo a arte da pesca, para si passada pela sua ascendência, sabendo assim interpretar a direcção do vento, os redemoinhos de nuvens que acabavam sempre em tempestades perigosas que exaltavam os ânimos do mar, de temperamento muito inconstante, sabia os sítios certos onde lançar as redes e não precisava de bússola para se orientar na partida ou no regresso, porque o Sol fazia-lhe o favor de indicar com os seus dedos raiados o caminho de regresso a casa, aquela casa modesta que se destacava de todo aquele areal, tanto da preia-mar como da maré baixa, tanto das colinas de areia como das falésias de aspecto hediondo e pontiagudo mas que na verdade não faziam mal a ninguém.
O peixe era a sua sopa dos pobres, era o seu sustento natural garantido que as águas salgadas sempre tinham prontas a oferecer. E mesmo que determinada espécie de pescado partisse para outras águas a fim de desovar e, consequentemente, reproduzir-se, outras haveria que por ali parassem, estando dispostas a dar a sua vida pela continuidade da vida do menino, que, por ele, não desejaria roubar a vivência a ninguém para seu próprio proveito. Mas a lei da Natureza é assim mesmo, existe uma cadeia alimentar, e os predadores vão-se amontoando uns em cima dos outros, cada um maior do que o outro, com bocarras ainda mais abertas e presas ainda mais afiadas do que o anterior, para que haja sempre uma ideia de proporção. Nesta situação, o menino ultrapassava em tamanho o peixe que caçava, por isso tinha mesmo de ser assim.
Como era tão novinho, sem que se saiba precisar a sua idade, o menino não fazia da pesca o seu negócio. Pescava porque tinha de comer, e era assim que se sentia bem. Não havia preocupação em ganhar dinheiro porque tinha já em casa tudo aquilo de que precisava. E quando não tinha, as varinas que vendiam na lota o trabalho árduo dos seus maridos perguntavam sempre se lhe faltava alguma coisa, porque não queriam que ele passasse mal. Por isso é que, sempre que não houvesse mais azeite, quer para temperar o peixe, quer para acender as lamparinas de casa, as senhoras prontamente lho ofereciam. E preparavam-se também para lhe coser as roupas simples que envergava todos os dias e que ao fim de um certo tempo começavam a dar de si, trespassando livremente o sal os seus tecidos.
Não se pode dizer, portanto, que o menino não estivesse constantemente sob os cuidados próximos e interessados das outras pessoas que viviam em casas acima da sua própria, mas que as falésias não deixavam ver por estarem rabugentas o tempo todo, tapando a vista a qualquer um que estivesse ao nível da casa do menino.
A casa, como já se percebeu, passara de geração em geração até chegar a si, e ao longo de todos esses anos permanecera intacta e intocada pela força da água salgada, que nunca ousara aproximar-se, sob pena de também nunca mais ser visitada pelo menino e pela sua pequena embarcação à vela, na qual seguia em busca do seu alimento. A água tem vida, como tudo neste mundo, e se o menino alguma vez a deixasse, sentir-se-ia certamente muito triste, e talvez por isso desse largas às braçadas com que envolve a areia numa aparente violência extrema, mas que verdade se poderia considerar como uma birra, tal como aquelas que dão aos meninos e meninas pequenos, quando têm sono e só querem dormir.
De viver tanto tempo sozinho e esporadicamente, que é como quem diz de vez em quando, estar ao cuidado das varinas no que diz respeito a recados pontuais que elas viam como necessitados de serem cumpridos, o menino habituara-se à solitude. É preciso dizer que solitude não é o mesmo que solidão, ou seja, a primeira tem a ver com estar sozinho e não sentir mal nenhum em assim permanecer, porque acaba por se transformar num estilo de vida como outro qualquer, enquanto a segunda tem a ver com estar sozinho sem que isso se deseje, encontrando-se submerso na tristeza que é não conviver com absolutamente ninguém e ter o desejo de estar entre outras pessoas. Também pode acontecer que, ainda no que diz respeito à solidão, se queira estar sozinho, sem mais ninguém à volta, com medo de provocar em si próprio uma certa culpabilidade, um sentimento de não querer importunar ninguém com a sua presença. Mas toda a gente sabe que ninguém precisa de se sentir assim e que todas as pessoas do mundo, mesmo aquelas que tenham um feitio mais duro, estão sempre disponíveis para dar a mão, seja em que situação for, porque o caminho para o bem-estar e para a felicidade universal não se faz sozinho. É preciso dar a mão primeiro, para que depois esta seja agarrada por outra.
No caso do menino, não havia solidão, havia solitude. Nunca se habituara a conviver muito com outras pessoas a não ser a própria família, que, para seu triste destino, acabaria evaporada nas águas gélidas do mar alto. E assim passava os seus dias, indo de manhã cedo para o alto mar de redes vazias, para voltar depois ao final da tarde com as mesmas cheias de vívido peixe, alguns ainda a dar às barbatanas, sufocando naquele que é o nosso único combustível de sobrevivência, o ar. É surpreendente como algumas criaturas vivem de modo tão contrário ao dos humanos. Vai na volta, se calhar é assim que se sentem mais felizes. Mas não vale a pena engrenar um discurso derrotista, porque acima do nível das águas do mar as pessoas também sabem viver bem.
O menino tinha prazer em ir pescar. Era a única coisa que fazia e corria com um gosto e uma vontade tão grandes que nem sequer pensava em parar para descansar. O conceito de fim-de-semana era algo ao qual se mostrava absorto, distraído, por assim dizer. Mas havia alturas em que era necessário parar, por isso guardava um pouco mais de peixe nessas ocasiões e conservava-o em gelo trazido pelas varinas da lota, para que a sua frescura não ficasse comprometida. Nessas alturas, dava atenção a outras coisas, como a própria casa. De pinturas não precisava, porque no Verão passado tratara disso e o estuque mostrava-se impecável. As telhas não deixavam passar água que fosse preciso amparar no interior das divisões com baldes. As janelas estavam longe de estarem lascadas e de mostrarem necessidade de atenção. Tanto as janelas como as portas haviam sido talhadas à medida para que, chegado o mau tempo, não inchassem com a humidade a ponto de rebentarem umas com as outras.
Que bem que ficava aquela porta azul-mar no seio da ombreira grossa que a rodeava.
Tal como convinha que o aspecto exterior da casa estivesse apropriado aos olhos de quem quer que a visse, embora esta não fosse uma preocupação tida em conta pelo menino, também o interior necessitava de cuidado. Por isso o menino pegava nos seus instrumentos de limpeza e fazia a lida da casa. Não está errado dizer-se instrumentos, porque também as vassouras, as pás, as esfregonas, os baldes produzem sons harmoniosos em contacto com as superfícies que acariciam. É como se se tratasse de uma orquestra sinfónica caseira de um único espectador e, ao mesmo tempo, tocador. Provavelmente estes instrumentos sentiam alguma inveja do búzio que estava pendurado atrás da porta da entrada e que naturalmente produzia música, sem precisar de estar em contacto com mais nada. O menino muitas vezes pegara no búzio para ouvir como estaria o mar em determinado dia. Era como se pudessem ler os pensamentos mútuos, um do outro, fazendo um a pergunta e dando outro a resposta através da sua simples mas bela sonoridade.
Ao final destes dias, o menino parecia sentir-se cansado, sentimento esse que não experimentava nos outros dias em que partia rumo ao mar para poder comer no final desses mesmos dias.
Uma vez, resolveu não fazer, nem uma coisa, nem outra. Não foi pescar, mas também não deu atenção à casa. Isto porque o búzio avisara-o na noite anterior de que uma tempestade estaria lentamente a formar-se lá em cima, onde os anjos caminham sobre as nuvens. E a confirmação surgira realmente.
O mar estava demasiado revoltado e mal-humorado, pelo que tentar ir falar com ele e chamá-lo à razão seria um gesto muito mal pensado. O menino aprendera já: se ele não quer ouvir ninguém e está chateado, então é deixá-lo estar, não fosse ele alguma vez virar-se contra o menino, que tão seu amigo era.
Também o céu não estava para brincadeiras, por isso se uniram ambos. O céu pingava e o mar recebia mais umas gotas a juntar à sua imensidão, como se não tivesse já pouca água com que se contentar, a ele e a todos os que viviam no seu interior, especialmente os peixes. Lá longe, onde o céu parece beijar o mar, acariciando-o com as suas suaves mãos, tão suaves que parece que não se sentem tocar-nos, a vista não era agradável. Não tinha a cor do costume, nem deixava ver o arco-íris, quando o Sol se escondia atrás de umas gotinhas de chuva e projectava os seus longos braços raiados, braços esses que tinham por hábito despertarem o menino para a sua rotina incansável. Não, desta vez não havia cores, não havia Sol, não havia nada, só água, muita água e, acima de tudo, gelada.
Não deixava de ser agradável, contudo, em dias assim, ouvir essas mesmas gotículas da chuva baterem contra as janelas da casinha do menino, iluminada no seu interior pelas candeias que simultaneamente irradiavam luz e calor. Era como se essas gotinhas de chuva tivessem frio de si próprias e quisessem buscar o calor das lamparinas que se encontravam suspensas do tecto. A casinha era toda ela forrada de madeira no seu interior, tanto assim é que seria um perigo ter uma lareira para gerar aquecimento. Por isso, aqueles pequenos pirilampos que se alimentavam em azeite teriam de ser o suficiente.
Neste dia, que se tornava num hábito à conta de se ter já estabelecido uma rotina, que era a rotina dos dias chuvosos, algo de diferente viria a mudar a perspectiva do menino em relação ao seu modo de vida em geral. Não que ele pensasse num modo de vida. Simplesmente vivia. Não lhe interessava pensar muito na filosofia que a vida tem para oferecer. Aliás, soubesse ele o que é filosofia e de certeza condená-la-ia ao mau humor do mar, suportado pelo mau humor do céu. Pensar muito não leva a nada. O menino era isso mesmo, um menino. Não tinha ele qualquer interesse em pensar demasiado. Todos os meninos e meninas tinham horror a ser adultos, porque sabiam que mais cedo ou mais tarde iriam começar a pensar e a ganhar responsabilidades que teriam de obrigatoriamente cumprir. Mas o menino não pensava assim.
Responsabilidades já ele as tinha, mesmo que não as visse dessa maneira. E sem pensar muito ia vivendo a vida. Ou melhor, vivendo. A vida que se vivesse a ela mesma. Cada qual com a sua mania.
Por simples curiosidade, sem querer saber concretamente como estaria o estado do tempo para o dia seguinte, o menino levantou-se da sua cama de rede, que o satisfazia melhor no sono e no conforto do que uma cama regular, e pegou no búzio que ficava sempre pendurado por detrás da porta da entrada.
Assim que o encostou rente ao ouvido, ouviu um som muito estranho, pouco habitual nas escutas que fazia do búzio nos outros dias. Era um som estridente, agudo. Um grito. O impacto da estridência, da agudeza do som, fez com que afastasse o búzio do ouvido, de forma a não ferir o tímpano. Mas depois voltou a colocá-lo rente e confirmou aquela aflição. Era realmente um grito provindo do seio das águas enfurecidas do mar. O menino voltou então a colocar o búzio no prego onde costuma repousar e espreitou à janela. Tentou ver mais longe, mas a chuva esborratava os vidros como batom líquido e não deixava ver nada. Se as presilhas das janelas não fossem fortes e não estivessem bem conservadas, depressa se abririam, não de par em par, como é costume, mas de rompante, de uma vez só.
Foi então que viu ao longe algo que se destacava do cinzento escurecido das ondas que discutiam entre si, para ver qual delas conseguia ser a maior. Viu uma cor alegre, no meio de toda aquela neutralidade, daquela paleta de uma cor só. Viu um toque de vermelho vivo, cuja vida se encontrava agora a ser lentamente sufocada pelo cinzento das águas. Era alguém que estava em apuros, alguém que, se não fosse rapidamente salvo, não voltaria a ver o Sol raiar para si uma vez mais. Nesse momento, a solitude ficou de lado e o instinto de salvação do menino tomou o seu lugar. Abriu a porta de casa de uma só vez e saiu disparado, mais rápido que o próprio vento, que soprava muito e com muita rapidez. Sem ter em mente que a temperatura que trazia do interior de casa poderia entrar num choque perigoso com a temperatura gélida das águas do mar, atirou-se e mergulhou, batendo com todas as suas forças mãos e pés, provocando ainda maior reboliço, maior confusão, do que aquela que a agitação da água por si só produzia. Não via nada à frente, por isso procurou, enquanto ele próprio esbracejava, aquele tom de vermelho que fazia destoar o resto do cenário. Ora o via um pouco mais à esquerda, ora o via um pouco mais à direita. O som do relampejar, da trovoada, ao longe, dificultava a audição dos gritos de quem quer que estivesse ali quase a afogar-se. Mas esses mesmos gritos continuavam. Só paravam às vezes porque a pessoa que ali estava lutava para não se deixar engolir pelas ondas e para não engolir ela própria mais sorvos, mais goles de água salgada. Por isso os gritos eram interrompidos por uma tosse natural que expelia o salgado daquele mar outrora bem-disposto, que não ameaçava ninguém. Mas quando lhe dava para seu mau, nada mais havia a fazer. Foi exactamente por ter sido provocado de mau humor que, tanto o avô como o pai do menino haviam desaparecido, deles nunca se sabendo nada mais, encontrando a sua sepultura no seio das águas.
Depois de alguns minutos à deriva, com as forças de braços e pernas praticamente esgotadas, o menino conseguiu acercar-se de quem mais ali estava. E colocando o braço livre à sua volta, com o outro procurou lutar contra a força do ondular, mas era difícil conseguir avanços. Então, num rompante, deu tudo por tudo antes que lhe surgissem cãibras, e nadou com toda a força da sua meninice em direcção à praia. As lamparinas que haviam ficado acesas com a saída abrupta do menino em direcção ao mar revoltoso serviam de farol para orientar a sua chegada.
Minutos depois, que quase pareceram uma eternidade, davam ambos, o menino e o vulto vermelho resgatado, à costa. Durante toda esta parafernália, que é como quem diz confusão, a pessoa que o menino salvara perdera os sentidos. Mas quando finalmente ganhou pé, não se preocupou em saber de quem se tratava, não lhe viu sequer o rosto. Não valia a pena, de qualquer das formas, uma vez que o temporal só trazia escuridão e pouca ou nenhuma luminosidade.
Arrastou consigo o peso morto do náufrago até dentro e fechou a porta com um pontapé, deixando-a bem cerrada. Por muito que o vento soprasse, não conseguiria abri-la, de tão bem trancada com força que estava. O menino deixou o corpo inerte, mole, estendido no chão e pegou em todas as lamparinas que havia, estivessem a ser usadas ou não, para as acender a todas como se de uma enorme fogueira se tratasse, para aquecer aquele corpo estendido.
O vermelho que vira ao longe era na verdade um quispo, que estava obviamente ensopado. Ao tirá-lo, com o máximo cuidado que podia ter, viu então de quem se tratava. Não soube quem era, mas soube o que era, se assim pode dizer-se. Era uma menina. Uma menina que não poderia ser mais bonita do que já era, de tão perfeita que se fazia. O menino colocou o quispo de lado e muito delicadamente, com as suas mãos suaves, apesar do ofício que tinha, ajustou o rosto da menina à luz das lamparinas. Os seus cabelos eram longos e tinham uma essência a mar, naturalmente, pois ali ficara algum tempo até ser resgatada. Eram loiros e serviam, naquele momento, de espelho aos pirilampos que a rodeavam para a aquecer. Pareciam fios de ouro finamente talhados, mas de ouro puro e genuíno. As suas maçãs-do-rosto estavam visivelmente enrubescidas, avermelhadas, com a afluência de sangue que percorria todo o seu corpo como agente natural de aquecimento. Eram também bastante proeminentes, e isso de certeza que se veria num sorriso de orelha a orelha. O seu nariz era redondinho na ponta, enquadrava-se perfeitamente em toda a composição do seu rosto. Sim, composição é a palavra certa. Especialmente no sentido musical. O rosto daquela menina era perfeito como uma melódica sinfonia, pois a par da melodia está a harmonia, e isso não faltava. Num gesto impulsivo, o menino procurou forçar, mas sempre com muito jeitinho, uma das pálpebras da menina, para que pudesse ver a cor dos seus olhos. Àquela luz, poder-se-ia dizer que o menino encontrara uma jóia preciosa, nomeadamente uma esmeralda, uma vez que os olhos daquela menina eram verdes em tom de mar calmo e apaziguado, mas de um brilho de pedra preciosa. Nunca o menino testemunhara semelhante beleza numa só pessoa.
Encantado com aqueles olhos, que apesar do brilho que ostentavam, pareciam sem vida, o menino não queria voltar a cerrar as pálpebras da menina, porque entretanto abrira também a outra. Mas pensou que o seu gesto, por mais inocente que se conservasse, não era o mais apropriado. Por isso deixou que os olhos daquela formidável batalhadora ficassem em repouso durante mais um tempo. O menino conseguia ver que o seu ventre cumpria o movimento natural da subida e da descida, por isso concluiu que estava a respirar e que a água salgada não teria penetrado os seus jovens e pequenos pulmões.
Para compensar o aquecimento proveniente das lamparinas, o menino foi a correr buscar um cobertor com que cobriu a menina, e esperou. Esperou que houvesse reacção por parte dela. Não queria forçar aquilo que parecia cansaço extremo culminado em sono profundo, por isso ali ficou, junto dela, sentado no chão, à espera de uma reacção que fosse. Não queria, nem arredar pé dali, nem ir dormir. Não tinha sono nenhum, a ansiedade que sofrera ao resgatar a menina que ali estava aos seus pés deitada dominava-o. De qualquer forma, queria estar na sua companhia para que, quando acordasse, não se encontrasse sozinha e com medo de se ter perdido num sítio que nunca antes vira e que não conhecia.
Toda a noite o menino ficara a olhar para a menina. A tempestade, que nessa mesma noite mostrara querer representar o papel de assassina de uma vida inocente, desaparecia agora de fininho, sem deixar rasto, como se nada tivesse acontecido, como se por pouco não tivesse alterado o mundo, privando-o de uma criança tão adorável quanto aquela. E quem diz esta, diz tantas outras mais. O Sol começava a penetrar os rectângulos de vidro das janelas abananadas do vento de furacão e, pé ante pé, foi iluminando os pezinhos da pequena, até que enfim enfeitiçou os seus brilhantes olhos, comandando-os a abrirem-se. Mas com o impacto da luz, que era sempre mais forte nos primeiros raios de carícias solares, a menina não abriu os olhos de uma só vez.
Começaram semicerrados, depois ligeiramente mais abertos, até que se abriram por completo à habituação da claridade, sempre, contudo, numa expressão de extrema serenidade, como se nada se houvesse passado na tenebrosa noite que acabava de dar lugar ao majestoso dia.
Quando se tem aquela sensação de acordar num espaço estranho, a confusão e a surpresa são inevitáveis, demorando o cérebro algum tempo a habituar-se à ideia de que afinal está tudo bem, no seu lugar. Mas a verdade não era essa, desta vez. A menina realmente não reconhecia o espaço envolvente, porque nunca ali estivera. Se a falta de reconhecimento do espaço já é por si mesma terrível de se compreender, quanto não o será ver que está alguém perto de nós, ali tão próximo, como se tivesse o controlo de toda aquela estranha situação. A confusão aumentou, assim, com a presença do menino, que a olhava atentamente, não se tendo atrevido a retirar os olhos do seu rosto durante aquelas horas todas. A garganta da menina não se inibiu, por muita ansiedade que estivesse a sentir, de soltar um pequeno grito de medo.
Felizmente para ambos, as lamparinas já estavam apagadas há muito, por isso já não havia chama no seu pavio, nem óleo que o alimentasse. Felizmente porque o susto que a menina sentira fê-la virar uma das lamparinas que a circundava, partindo-se no chão, já seca. Por pouco não se cortara e por pouco outro dos pirilampos não tivera o mesmo destino de se quebrar no chão, apenas deu umas voltas sobre si e voltou ao lugar.
― Quem és tu? – perguntou a menina, a medo e desconfiada.
― Não tenhas medo! Não quero fazer-te mal... – procurou descansá-la o menino – não te lembras que ontem estavas à deriva, no meio do mar, e quase te afogavas? Eu fui ter contigo e salvei-te.
A menina parecia confusa com o relato. O choque fizera-a agarrar-se ao cobertor que a tapava do frio. Mas a pouco e pouco, começou a recordar o que tinha acontecido na noite anterior.
― Sim... Sim, já me lembro...! Estava a ver que dali não sairia mais, parecia que via o fim à minha frente...
Enquanto pronunciava estas palavras, os seus olhos bailavam de um lado para o outro, como se estivessem a ajudá-la a recordar-se com precisão.
Depois, quando terminou de falar, olhou o menino, desta vez com o olhar de regresso à serenidade, deixando o espanto para trás.
― E tu... – engolia em seco, tentando preparar-se para a articulação a que teria de recorrer para pronunciar as próximas palavras – tu salvaste-me...?
O menino assentiu, com um ligeiro sorriso que lentamente começava a brotar dos seus lábios.
― Sim, salvei-te.
― Mas como é que soubeste que eu estava ali, com a escuridão toda e com o barulho das ondas e do vento?
― Se calhar vais achar um bocadinho estranho, mas eu tenho um búzio – apontou para o instrumento marinho que descansava sobre o prego espetado na porta – que me diz como é que os dias vão estar, para saber se posso ir ou não pescar.
A menina seguiu com o olhar o apontar do indicador de uma das mãos do menino, e quando este terminou de falar, respondeu ela.
― Não, não acho nada estranho. Acho muito engraçado, até. Se não ouvisses o teu búzio todos os dias, não poderias ouvir os sussurros do mar, que de certeza não consegues ouvir tão bem como quando estás ao pé dele, ou mesmo aqui dentro, vendo-o da janela, como acredito que se veja.
― Onde vais? Consegues andar...?
Ambas as perguntas haviam surgido porque a menina, depois de saborear durante algum tempo o tecido suave do cobertor com as pontas dos dedos, e depois de ter reconhecido que aquele menino que ela tinha à frente o fizera por ela, para seu bem, deixara-o cair e aproximara-se da janela em passo de corrida. Confirmava-se. O mar podia ser visto daquela janela, a que ficava imediatamente à esquerda da porta, falando da perspectiva do interior. Apesar da tentativa pouco simpática do mar de poucas horas antes ter tentado engoli-la, a menina não deixou de admirar a vista, agora que o Sol tinha espaço livre para estender na totalidade todos os seus raios. Parecia que, com a vinda da menina à janela, o astro-rei encontrara um pretexto para se fazer galã e, raio ante raio, beijar as maçãs-do-rosto rosadas da menina. O calorzinho bom fizera-lhe muito bem, parecia estar a recuperar vida progressivamente.
É de notar que, nem um, nem o outro, quisera saber o nome do que estava defronte. Sim, claro, a menina perguntara ao menino quem era, mas, sem qualquer tentativa de ludibriar a pequena, talvez fugindo à pergunta, respondeu com todas as letras, ainda que inconscientemente, que era aquele que a tinha salvo de morte certa. E chegava. Mais do que isto era transmitir informação a mais, justamente. Que interessam os nomes das pessoas ou das coisas, afinal? Tudo não passa de uma necessidade linguística da qual alguém se lembrou, só para confundir o sentido das pessoas e das coisas. Estavam muito bem assim. Sabiam que, a partir daquele momento fatídico tornado colorido e vívido, poderiam confiar um no outro.
O menino não quis deixar de saber, ainda assim, que fazia aquela menina, que por acaso começava a olhar o menino com olhos cada vez mais fixos nos seus pormenores, que só os seus olhos poderiam reflectir, ali perdida no meio do mar.
― Estava com os meus pais, no barco deles... Não sei dizer exactamente o que aconteceu... Eles começaram a ver que o tempo não estava para melhorar, porque já se sentia nas velas a força do sopro do vento, como se estivesse a encher um balão, sabes...? E então, gerou-se uma certa azáfama e tivemos de partir de volta para terra. A água já começava a respingar muito para dentro do convés, que acabou por se tornar escorregadio. Eles corriam de um lado para o outro, fazendo mil e uma coisas ao mesmo tempo, e eu ali estava, no meio deles, querendo ajudar fosse de que maneira fosse, mas eles diziam-me para não me preocupar e para ficar quieta, devendo descer para dentro. Só que não quis sentir-me inútil! Por isso procurei ajudar, fazer qualquer coisa para nos fazer chegar o mais depressa possível a terra, mas tudo o que consegui foi escorregar e...
O menino percebera já o suficiente. Estava sentado, na mesma posição onde estivera até agora, olhando a menina falar para o seu próprio reflexo, espelhado nos quatro vidros da janela. Para que não sofresse mais na explicitação do seu relato, o menino levantou-se, foi ter com ela e colocou uma mão sobre o seu ombro, gesto em muito apreciado pela menina, que sentira, num só toque, um enorme conforto. Passando por cima do óbvio sucedido, avançou um pouco na história, em direcção ao final.
― Eles deveriam pensar que eu estava bem, em segurança, dentro do barco, longe de toda aquela confusão em que andavam. Com certeza já devem ter dado voltas possíveis e impossíveis ao barco, à minha procura... Tenho de os encontrar de novo. Será que podias... – a vergonha assaltara-a, impedindo-a de completar a frase.
Por instinto, o menino completou o pedido por si.
― Ajudar-te a encontrar os teus pais? Claro que sim. Podes contar comigo para tudo aquilo de que precisares. Não nos conhecemos há muito tempo, mas podes chamar-me teu amigo, que o mesmo farei contigo.
Sorriram ambos, e ambos acorreram um ao outro para se entregarem no abraço que o outro tinha para oferecer. Durante um bom bocado, doce como é este nome, ficaram agarrados um ao outro.
O silêncio comunicado por parte da restante habitação soava, por incrível que pareça dizer que o verbo é mesmo esse, estranho. A menina perguntou então, com a curiosidade lentamente a invadi-la, porque é que o menino ali estava sozinho. Em breves palavras, não por tristeza sentida, mas simplesmente porque não havia nada por que verter cascatas de salinas dos olhos, o menino explicou-lhe a sua história. Disse-lhe que a família não existia mais por tais razões, que em todo o caso podia contar com o apoio das varinas da lota, elas próprias vítimas iminentes da viuvez, e que pescava, pescava muito, não só para sobreviver, mas também para viver. Assim aprendera a levar os seus dias, e assim continuaria, algo que a menina ouvira com uma certa tristeza, especialmente na parte de o menino não ter família, mas que, sem qualquer outro remédio possível, respeitava.
Urgia, era necessário, começar as buscas pelos pais da menina, o quanto antes, não fossem eles pensar que estariam obrigados a sofrer um eterno desgosto, por sua vez antinatural. A menina queria ir até ao mercado de que o menino falara antes, talvez eles andassem por lá à sua procura, perguntando às pessoas se haviam visto uma menina com tais características, iguais às da fotografia que certamente ostentavam sem cansaço sentido na mão que apertava com força esse mesmo retrato, ligada a um braço que se mantinha erguido, sem dar perspectivas de vir a descansar tão cedo, custasse o que lhe custasse.
Mas o menino contrariou-a com uma hipótese que lhe pareceu mais lógica, baseada em muito no seu próprio historial. Quando o avô se perdeu no mar, neste caso, para sempre, assim como o pai, esperara notícias por parte de outros pescadores que procuravam pelos seus familiares desaparecidos, sem, contudo, sucesso. Assim, rapidamente o menino puxou a menina pela mão, muito firmemente, e rumaram até ao barquinho que secava ao Sol, já com as últimas gotas do temporal completamente escorridas sobre a areia. O menino nem precisara de pedir ajuda à menina para desencalhar a embarcação. Disse-lhe para subir e, mesmo com o peso da menina, que era proporcional ao seu e, por isso, bastante leve, empurrou ambos, a menina e o barco, rumo às primeiras ondas que, como fazem os meninos com birra, vão batendo na areia só porque não podem ir para mais longe, para o pé das ondas maiores e fortes.
Em vez de esperar pelo efeito de bolina das velas, o menino pegou num par de remos que tinha guardado no interior do seu barquinho e começou a remar, a remar muito, com todas as forças que tinha, tal como dera aos braços e às pernas não muitas horas antes para salvar aquela que estava sentada à sua frente, mirando o horizonte, à espera de um motivo para festejar, não esquecendo nunca aquilo que aquele menino, feito em tão pouco tempo seu amigo, por si fizera. O bom tempo ajudava em muito à deslocação constante do barquinho. Visto de longe, pareceria um barquinho de papel, construído com amor por uma criança habilidosa que nesse mesmo barquinho deposita todos os sonhos do mundo, enviando-o na missão de os ver cumpridos, leve o tempo que levar. Anos mais tarde, quando essa criança tivesse entrado na idade adulta, quando já tivesse de pensar nas coisas e ter responsabilidades, lembrar-se-ia de quando enviara esse barquinho e de como os seus sonhos se haviam tornado realidade. Para isso, basta querer.
Algum tempo mais tarde, já o Sol se erguia no seu ponto máximo, lá em cima, onde só as estrelas vivem, muito acima dos anjos que caminham sobre as nuvens, os meninos avistaram um outro barco. Ainda estavam separados em alguma distância para um poder ver com precisão o outro, mas progressivamente o reconhecimento concretizou-se. A menina conseguia ver que o barco que ali estava a navegar perto era o dos pais, que andavam como baratas de um lado para o outro, procurando cobrir com os respectivos olhares cada milímetro cúbico de água. Então a menina entregou-se a uma óbvia felicidade e chamou.
― Pai! Mãe! Estou aqui! Encontrei-vos!
A primeira palavra que a menina dissera fora suficiente para, tanto pai, como mãe, se virarem para o mesmo lado, encontrando os seus olhares o olhar da filha, cheio de alegria e comoção por se reunirem uma vez mais, quando tanto eles como ela pensavam que não mais se veriam. O menino, movido pela felicidade que atingira a sua nova amiga, remou ainda com maior força, como se tivesse uma carga de energia suplente, da qual ele próprio não sabia. Assim, num ápice, ambas as embarcações deram as mútuas boas-vindas, encostando-se uma à outra, como se elas próprias já não se vissem há muito tempo. A menina saltou então para o barco dos pais, saltando depois para os braços de ambos, que a seguravam com uma inconfundível ternura.
― Encontrámos-te, meu amor, encontrámos-te!
― Nunca mais deixamos que mal nenhum te aconteça, está prometido e jurado!
De amor estavam carregadas as palavras que tanto o pai como a mãe haviam dirigido à filha. Ela também mostrara palavras plenas de afecto para com os pais, mas sabia perfeitamente que não estava ali sozinha com eles. O menino permanecia no seu barquinho, sentado na sua serenidade de sempre.
― Pai, mãe, este menino é o meu novo amigo. Salvou-me da tempestade de ontem e ajudou-me a encontrar-vos.
O pai e a mãe entreolharam-se, de espanto.
― Palavra? – exclamaram ambos.
Disseram logo que não podiam encontrar as palavras adequadas para demonstrar a gratidão que sentiam para consigo por ter salvo a filha e ainda a ter ajudado a encontrá-los. Exclamaram, não por mal, porque não sabiam, e também porque era natural dizer-se isso a uma criança, que os seus pais deveriam também eles estar muito orgulhosos, não só do seu feito, mas também da sua maneira de ser em geral. Muito descomprometidamente, o menino disse, nas mesmas palavras que oferecera à menina, que estava sozinho no mundo.
Também da boca para fora, mas com a melhor intenção do mundo, forrada e estofada de incomparável ingenuidade, a menina fez um pedido.
― Vem viver comigo! Podemos ser como irmãos! Fazemos tudo juntos!
Neste compasso de tempo, que foi desde a primeira à última exclamação da menina, o menino não conteve, como já não acontecia há muito, as lágrimas que ansiosamente esperavam poder ver a luz do dia. Uma de cada olho, muito sorrateiramente saíram, evidenciando-se com o trespassar dos raios solares sobre o rosto do menino. Depois de ter olhado algum tempo com um sorriso sincero a menina e os pais desta, proferiu estas palavras:
― Ficar-te-ei eternamente grato pelo pedido que me fazes, mas não posso responder-lhe da maneira que gostarias... O meu lugar é aqui, no mar, com o meu barquinho, os peixinhos e a minha casinha. Mas não fiques triste, porque uma coisa te digo: viverás sempre no meu coração, e poderás visitar-me sempre que quiseres. És minha amiga para sempre.
Com as lágrimas também a escapulirem-se dos olhos da menina, a resposta dela não perdeu a graciosidade.
― Meu amigo serás também para sempre, aconteça o que acontecer.
Findas as palavras, abraçaram-se um ao outro, enternecidos pelo carinho mútuo, que tinha tudo de genuíno, verdadeiro e incondicional.