domingo, 5 de novembro de 2006

Quem Sou Eu?

Olho o tanque onde minha mãe lava a roupa, pensativo. Tudo me ocorre, neste momento, na minha mente. Acho mesmo que está a rodar sobre si mesma. Já não vejo nada que seja claro.
Meu pai lê, interessado, o jornal. Talvez algo sobre política, economia ou até mesmo desgraças futebolísticas.
Quer dizer, acho que se encontram a realizar estas actividades... Não me consigo abstrair...
- Quem sou eu? - subitamente perguntei, olhando o tanque.
Minha mãe provavelmente olhava para mim, não sei... Foi meu pai que respondeu.
- Quem és tu? - tirara os olhos do jornal e colocara-os sobre mim - Ora, tu és meu filho, és... és... um rapaz em crescimento, que se há-de tornar num Homem que agora vive e, mais tarde, tal como todos os outros, morrerá...
Havia sido esta a sua resposta. Não me convencera. Havia qualquer coisa que ainda me inquietava.
- Quem sou eu? - perguntara, de novo.
Meu pai pousou o jornal, pois já havia retomado a leitura e, algo perturbado, chamou-me.
- Vem cá, senta-te aqui...
Só agora havia desviado os olhos da água espumada de sabão. Contornei o tanque e sentei-me ao lado de meu pai.
- Deixa-me dizer-te uma coisa: - começara - tu és meu filho. És um rapaz que agora cresce, que... que se está a educar para, de futuro, se formar, arranjar um bom emprego, eh... eh... criar uma família e dar-me netos!
Talvez. Começara a assimilar toda aquela informação demasiado sintetizada para meu gosto, quando minha mãe interrompia o meu ciclo pensativo.
- Rapaz, vai buscar aquela manta azul que está no teu quarto, vá! Para ver se me despacho deste lavouro.
Obedecera. Encaminhava-me, meio ofuscado, até casa e, por sua vez, até ao quarto. Não peguei na manta de imediato. Deitei-me, primeiro. E pensei, pensei, pensei... E lá longe, uma voz interrompia-me, uma vez mais...
- Então? Demora muito?! Vá lá, quero despachar-me!
Dobrei lentamente a manta e, já em pé, passei em frente ao guarda-fatos. Num segundo emudecera para, no outro, gritar alarmado:
- UM LADRÃO! AAAH! - fugia de frente daquele móvel para me esconder num canto obscuro do quarto. Sentia passos de pessoas a aproximarem-se.
- O que é que se passou aqui?! - um - Que foi? Que tens? - dois. Eram meus pais que chegavam, alarmados.
À medida que reconstituia a cena, ia-lhes reproduzindo o que vira.
- Vi ali um ladrão! Vi ali um ladrão!
- Viste um ladrão? Aonde? Aonde?!
- Como era o ladrão?! Diz-nos!
- Estava de frente ao guarda-fatos!
- De certeza? Mesmo?!
- Sim, tenho a certeza!
Levantaram-me e encaminharam-me, calmamente, ao armário. Apercebera-me, de repente, que os espelhos das portas estavam voltados para mim. Meu pai espreitava por cima do meu ombro e só lhe ocorreu pensar numa frase.
- Olha bem e vê se é um ladrão... - dizia, constrangido.
Meus pais afastavam-se. Comecei a aproximar-me do espelho, já de braço estendido, como que a procurar algo. Toquei a superfície de vidro com uma mão e, com a outra, toquei no meu rosto, sempre observando estes lentos movimentos.


Espreitava pela janela, muito constrangido, meu pai, olhando para baixo. Conseguia ouvi-lo falar.
- Não passas deste Inverno... - dizia, muito triste. Com certeza, não mais do que eu.
Apressara-me a correr de encontro àquela figura que, agora, se havia voltado para mim.
- Estava a dizer para mim mesmo que... é difícil o Mondego passar deste Inverno... Considero, mesmo, que seria uma sorte para ele que morresse... Deixava de sofrer, pelo menos...
Ripostara contra aquela afirmação:
- Não morre! Não pode! - notei os meus olhos encharcados.
- Que esperas dele?
- Que não morra! Ele não pode morrer! - lutava, amargamente, contra aquela possibilidade.
Meu pai mexia-se, pela primeira vez, desde aquele momento mórbido de encontrar o nosso animal de estimação preferido extremamente debilitado.
- Deixo-te com ele... - dissera. Parara para olhar para mim, algo perturbado para, depois, me deixar só com o cão.
Foi a partir desse momento que, à minha frente, não enxergava nada. Estava em transe, caminhando para o nada.
Acordei ao som da voz de minha mãe: - Rapaz, vamos à Missa do Galo!
Era um som que vinha de longe e, ao mesmo tempo, de perto. Dera meia-volta e passara, de novo, em frente ao Mondego. Isto é, em frente à casota, pois acabava de descobrir um vazio.
Não me estava a aperceber da situação. Colocara a mão dentro da casota e chamara por ele.
- Mondego! Mondego! - não havia resposta, habitualmente, um frondoso latido.
Só consegui, a partir daí, sussurrar uma palavra, prova da falta de voz que se iniciava na minha garganta.
- Morreu...
Levantei-me imediatamente e corri que nem um louco à procura dele. Chamava, por todos os lados, o seu nome. Nada em casa. Nada no alpendre. Nas redondezas, pouco ou nada mostrava a sua recente presença no local. Só depois de correr mais tempo vi uma figura naquele campo coberto de neve. Aproximava-me cada vez mais.
Era o Mondego. Ainda tinha a sua manta... Sentei-me ao lado dele e só pude abraçá-lo...

2 comentários:

  1. solta o abraço...deixa-o ir... Poderás abraçá-lo, de uma forma diferente, sempre que quiseres!

    Texto lindo!

    Abração [[]]

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  2. As nossas cenas =)*
    LINDO!**

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