terça-feira, 16 de março de 2010

O Pedido

Hoje, à semelhança de outros dias que me correm nas veias, é um dia em que vou executar uma acção bastante importante para mim e que, assim o espero, trará os mais túmidos frutos.
Estamos na Primavera, já. Apesar de haver uma pequena chuva de vez em quando a calcar o pavimento na sua espessura umas vezes mais fina, outras, mais grossa (como é fisicamente mais do que óbvio mas literariamente tosco), o Sol é o astro-rei, é quem domina esta época, bem como o dia de hoje. Está muito, muito calor, e o recurso a óculos de sol é inevitável, se não queremos andar para aí a franzir constantemente o sobrolho para nos protegermos da luminosidade.
Sempre considerei que era com alguma antecedência que grandes empreendimentos deveriam ser projectados, e aquilo que quero fazer é uma viagem por tempo que agora considero indefinido até à minha capital europeia de eleição, e de eleição porque, primeiro, foi a única que visitei até agora, e depois, porque me sinto em casa sempre que toco aquele solo insular que se encontra sob um tempo tão estranho quanto o podem ser os habitantes daquele local, que agora até estão praticamente apagados, porque o domínio do imigrante é inacreditável.
Mas acontece que não quero ir sozinho. Quero levar comigo uma pessoa muito especial para mim. Há-de perceber-se de quem se trata ao longo do caminho que levarmos. Mas antes disso, tenho de mencionar uma coisa algo sinistra e, ao mesmo tempo, desproporcional ao século vinte e um e hilariante. É que aquilo que eu vou fazer, e que me está a provocar simultaneamente um certo gozo e nervosismo, aumentados pelas hormonas aos saltos por causa do calor, é qualquer coisa como pedir a mão desta princesa ao pai dela, ou seja, pedir-lhe autorização para viajar comigo. Só comigo, o que é uma ideia, temo eu, ligeiramente obscura aos olhos do patriarca. Mas já disse à tontinha para o ir prevenindo de que ia falar com ele, hoje à noite, quando estiver um tempo mais fresco e mais calmo, tanto no calor, como no bom humor dele.
Recebo uma mensagem. É ela, cujo nome na lista de contactos foi transformado para uma coisa só minha, porque o seu nome real é comum a todos, e eu quero guardar para mim um pequeno pedaço dela que seja só meu, porque dei a mim próprio esse direito, e porque soube que valia a pena fazê-lo. Assim não preciso de ver reticências a substituir o comprimento dos seus pomposos apelidos. Diz ela que já posso ir andando lá para casa. Antes de me imaginar a dirigir-me para o carro com o sorriso nervoso, ela pergunta-me se estou preparado e também que caminho vou tomar. Sugere a auto-estrada, com um ícone de expressão ao lado a deitar uma pequena língua de fora. Eu confirmo-lhe, efectivamente e sorrindo de volta, que vou seguir pela auto-estrada até à sua morada, porque o caminho rústico que a própria outrora me ensinara, seguindo à minha frente, não me ficou de todo na memória. Por isso prefiro dar uns trocos virtuais à Brisa, eu até estou algo recheado porque vou fazer a viagem, por isso, não tem problema. Respondo também que sim, que me sinto preparado, e que terei de jogar no campo do improviso quando estiver a comunicar com o manda-chuva. Ela responde-me com uma expressão de riso. Já antes eu próprio me rira com o que estava a escrever.
E enquanto escrevia, estava a descer a escadaria do condomínio onde vivo, saindo pela porta principal até ao meu modesto carro, que, ao contrário do dela, e eu sei que ela implicaria comigo se lhe repetisse isto, tem uma embraiagem que está muito longe de acabar. Mas sim, claro, ela tem um jipe e é diferente. Não há trânsito na auto-estrada. Em cinco minutos estarei lá num instante, basta-me sair, contornar uma rotunda, chegar a outra, sair na primeira oportunidade e depois virar à esquerda. Já da primeira vez que lá cheguei eu memorizara estas indicações, transmitidas também por uma mensagem. A primeira vez que lá jantei. E esta era agora mais uma, mas pelo menos estava previamente combinada. Oh!, só de imaginar a expressão do pai. Ela adora que eu o imite, e só sou capaz de me lembrar de uma única frase para o fazer, tenho de o observar melhor e conseguir fazer outras coisas, embora esteja bastante parecido.
Saco do travão-de-mão. Já cheguei ao destino. Ao contrário daqueles tempos de Inverno rigoroso, o sol continua bastante em cima para as horas a que nos encontramos. Sinto uma certa vergonha em tocar directamente à porta, por isso aviso-a por mensagem de que já cheguei. O trinco abre, tenho de puxar o portão para fora, e depois empurrá-lo, para o conseguir abrir. Avisto-a. Está tão bonita, hoje. E em verões. Hoje, sim, ela tem razões para estar assim, com o mesmo vestido com que a conhecera pessoalmente, mas sem o pormenor dos óculos de sol em formato de coração, tipo Lolita, uma comparação que ela despreza. Está sorridente. Foram poucas as vezes até hoje que a vi triste ou taciturna, de resto. Por isso me ficam sempre na memória aqueles olhos com que me olha neste momento. Um verde-esmeralda absolutamente brilhante. Aproximo-me a passo largo na ânsia de a abraçar, e receber um abraço que só ela sabe dar. É seguro, confiante, forte. É o melhor remédio do mundo, se a tão longe podemos chegar. Enquanto a aperto contra mim, consigo sentir-lhe os cabelos, cuja essência me toca o nariz. São loirinhos, encaracolados, transformam-na numa bonequinha para a qual dá um gosto incrível olhar. Depois de uma longa respiração e de uma beijoca no seu ombro esquerdo, porque os nossos corações se haviam tocado naquele momento, naquele abraço, desprendemo-nos enfim. Quanto tempo durou, não sei precisar. Pode ter sido um minuto, quem sabe dois. Mas esse é o tempo exterior, é o tempo irrelevante. O tempo que está no nosso interior, esse sim, é o que conta.
Entramos. Digo olá à irmã mais nova, a bebé da casa, que já conheço de outras ocasiões, depois cumprimento a mãe. O pai ainda não chegou. Suspiro fundo. Ufa. Aproveito aquele tempo de intervalo para pendurar o casaco no bengaleiro, rodar os braços para a frente, depois para trás, como quem se prepara para entrar em campo e jogar. Portão. É o pai, exclamam ambas as irmãs. Estou feito. Chegou a hora.
É óbvio que olhei para o senhor e agi muito normalmente, não fiz qualquer espécie de vénia como quem cumprimenta um adversário. Dei-lhe um aperto de mão, como se faz à homem, daqueles bastante seguros e apertados para mostrar convicção. Estava à espera que ele me levasse para a conversa, ou que começasse a sugeri-la naquele espaço de tempo morto em que esperamos pelo jantar, mas não, já estava a ser servido. Graças a deus. Ou Deus, para que não seja considerado herege.
Desta vez, ele não faz qualquer tipo de comentário sobre o facto de o jantar ser ou não insuficiente para a minha pessoa, que é convidada daquela noite. A mãe tratou do assunto, não tem problema. E só rezo para que a princesa não se lembre de me pedir para fazer uma imitação dele mesmo ali à sua frente, sob pena de vir a complicar o processo de conseguir convencê-lo a deixá-la viajar comigo. O jantar termina, a bebé ajuda a mãe a arrumar a mesa. A princesa tem de ir lá acima, vai escovar os dentinhos, e pede que vá atrás dela só para me mostrar uma canção nova que tentou aprender e tocar na sua guitarra acústica. De imediato, tentando fugir ao meu único propósito de estar ali, digo-lhe que sim, que vou com ela. O pai imediatamente interrompe. Diz que quer conversar comigo, ela pode muito bem mostrar o que tem a mostrar depois. De preferência à luz do pleno dia, e não ao anoitecer. Claro.
Acontece então que o pai senta-me no sofá com um simples gesto. Incrível, o poder que ele tem. Um só gesto, decidido e indubitável, e fez-me sentar. Foi buscar uma garrafa de brandy. Tirou dois copos. Serviu-os a ambos, e deu-me um. Perguntou-me se eu aguentava o teor daquilo, numa de testar a minha força ou fraqueza. Disse-lhe que estava inteiramente confortável. As coisas começavam a ficar divertidas, aos poucos. Eis que me pergunta exactamente quem eu sou, o que faço, quais são as minhas perspectivas para o futuro, que intenções tenho para com a filha. Sim, é óbvio que me fez esta pergunta. Todo o pai teatral quer um dia fazer esta pergunta a um rapaz que tenha alguma espécie de interessa na sua querida, como seja levá-la a viajar de avião para um país distante em milhares de quilómetros. Eu. Sim, bem. Tranquilo. Faço uma piada ou outra no meio do meu discurso extra-racional, mas olho para a cara de frete dele e prossigo sem piadas.
Passo a explicar-lhe as condições desta viagem. Começando imediatamente no avião, sendo que existem três lugares do corredor à janela, tem de ficar uma pessoa desconhecida no meio, ela à janela, para ver as nuvens e sonhar em tocá-las, talvez, e eu no corredor, para ser cavalheiresco e pedir um chá e uma sandes à assistente de bordo, mas sempre distante da princesa, que se perde com as vistas. Chegados à pousada da juventude, porque foi isso que combinámos que ia acontecer, não num hotel, porque os trocos não são assim tão largos, ficaremos num quarto só para os dois, não num dormitório, para não haver cá misturas com outras pessoas. Ele levanta o sobrolho quando digo as palavras quarto, só, dois. Mas passo a explicar de imediato. Esse quarto contém camas separadas, uma numa parede, a outra ao pé da janela. São precisos para aí cinco passos até chegar de uma cama à outra. Incrivelmente, digo-lhe que consegui um que tem dupla casa de banho, para que eu não me engane, ensonado, entre aspas, e entre por ali adentro enquanto a filha toma duche. Eventuais fotografias que se tirem, juntos, mas com uma noção de distância entre os corpos, para não haver contacto excessivo. Jantares, nunca de mãos agarradas. Passeios, sem dar o braço. Sempre com muito respeito pela integridade da princesa, cuja pureza fica assim livre da sujidade, soberba e corrupção das minhas mãos.
Silêncio.
Não sei para onde olhar, ou o que fazer. Dou um grande gole de brandy e procuro aperceber-me se estou a suar muito ou não. Finalmente o gelo quebra. O pai chama a filha, que, obviamente, estivera no cimo das escadas a escutar a conversa e a rir-se daquilo tudo para si própria. Ele olha para os dois jovens, que estão sentados no sofá lado a lado, de frente para o patriarca. Ele diz-lhe que passei com sucesso a prova e que posso levar a princesa a viajar comigo. Deus do céu, que dia mais feliz. Só Ele sabe como é importante. Num impulso, quase que nos abraçamos, mas ele aclareia a garganta e ficamos por ali, apenas trocando sorrisos cúmplices.
Dou as boas noites a todos e vou andando para a entrada da casa. A princesa encosta a porta. O pai não se dá ao trabalho de meter o nariz. Dou-lhe um enorme beijo na face rosada. Ela retribui. Um abraço. Um silêncio. Um momento. Desprendemo-nos. Saio. Fecho o portão. Entro no carro e começo a conduzir para regressar a casa. Dou por mim a sorrir. Hoje sim, sinto-me feliz.

4 comentários:

  1. o meu carro tem uma embraiagem óptima17/03/10, 19:46

    Isto tem um ar super romântico. Estivesse eu de fora e nem um juramento a pés juntos, com recorrência a entidades superiores ou membros familiares queridos me dissuadiria da ideia de que isto era romântico. Ahah, ri-me muito! Está mesmo engraçado e bem escrito =) admiro a tua capacidade de escrever mais que página e meia, mantendo o interesse... Não sou nada capaz..!

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  2. Mas querida, sendo que és tu, como poderia este texto não ser interessante? És uma tonta, mas gosto de ti assim ^^

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  3. Delicioso, devo dizer.
    E o/a "o meu carro tem uma embraiagem óptima" tem razão. Também eu não consigo escrever mais que página e meia mantendo o interesse xD

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  4. Este texto está de mais! Os pais às vezes conseguem mesmo ser obtusos...

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