quarta-feira, 3 de março de 2010

Hoje

Hoje é um dia muito especial.
Acordo cedo, perto das sete e meia da manhã, sem contar com a ajuda do despertador digital, porque hoje consegui despertar sozinho, tal é a ansiedade que tenho vindo a sentir já desde ontem à noite. Não é que eu seja uma pessoa que não tem brio em si própria para não se aprimorar e pôr-se apresentável à sociedade nos restantes dias da sua vida, mas, como hoje é um dia diferente, procuro embonecar-me o melhor possível.
Vou tomar um duche rápido, tento não demorar mais de dez minutos debaixo da água quente que me escorre da cabeça aos pés, de modo a poder fugir ao ligeiro frio que se instala no quarto de banho, reflectido e reverberado pelos azulejos pintados sem mão humana. Quando saio, o meu cabelo está já praticamente definido, o penteado, isto é, que é, na verdade, despenteado, como passei a usar há uns tempos ou, melhor dizendo, a reutilizar, porque durante pouco mais de três anos deixei-me encantar pelas caracoletas que até então desconhecia possuir. Enfim, basta dar-lhe uma fraca secadela para o pôr de vez no sítio. Há pessoas que afirmam conhecer as outras de olhos fechados só pelo odor natural, que é muito próprio e identificativo de alguém. Honestamente falando, desconheço que odor natural seja o meu, mas como nunca ninguém se queixou de cheiros incomodativos, parto do princípio que, pelo menos, não seja mau. Em todo o caso, resolvo disfarçá-lo no pescoço com a fragrância do costume, que tem uma certa aproximação à canela, segundo já me foi dito.
Antes de entrar no quarto, já a indumentária que penso favorecer-me está trancada na minha mente, sei com toda a certeza aquilo que é melhor escolher. Não sou uma pessoa de muitas cores, aliás, baseio-me sempre, ou quase sempre, no preto. Outros possíveis complementos virão a seguir. Feito tonto, ponho-me a pensar e disperso-me por completo enquanto estou no processo de calçar uma simples meia negra. Umas vezes suspendo essa acção, outras vezes continuo a executá-la, mas em devaneios, com o olhar fixo num ponto qualquer e com a boca semi-aberta, deixando ver um pequeno traço da dentição. É aquele olhar canastro que eu tanto aponto a imensa gente.
Eis que acordo. Estava em vias de fazer qualquer coisa. Ah, claro. Era a meia, e agora vêm os sapatos. Sim, porque nos últimos anos entreguei-me aos ténis, mas em dias especiais, sou bem capaz de os colocar de lado. Olhando o despertador digital que desligara antes por não precisar dele para despertar do sono que não tinha, reparo que o mostrador ficou a piscar repetidamente, como se tivesse falhado a energia eléctrica, mas não, as horas estavam certas, ou já desviadas do tempo real talvez em três ou quatro minutos, sendo que adiantar o relógio é a única maneira mais rápida e prática de fazer parar aquele maldito piscadoiro. Estou dentro do horário, não hei-de chegar atrasado. Ou então em cima da hora, mas atrasado não, não hei-de ficar de fora. Pego na papelada e saio.
Não sou pessoa dada a transportes públicos. Já conheço de trás para a frente a conversa das ecologias e dos dióxidos de carbono e etc., mas não consigo deixar de lado a minha habilitação legal para condução de automóveis ligeiros, que tanto dinheiro custou a obter, bem como tempo precioso em que podia ter feito outra coisa qualquer que não testes cujas perguntas comecei a decorar ou a assistir a aulas chatas de código. Por isso mesmo saco da minha chave que me destranca o fecho centralizado e entro no meu carro, o meu primeiro carro, que, apesar de na altura ter pouco mais de cinco anos, estava impecável. Durante grande parte do caminho não encontro muito trânsito, só mais na parte final do percurso, que é quando as coisas começam a afunilar.
Durante o dia, apesar de saber que devo encontrar-me concentrado para fazer as minhas coisas como deve ser, a mente foge de vez em quando, perde-se uma vez mais, enquanto me encontro a fazer um gesto qualquer aparentemente sem significado nenhum, mas que no fim acaba por querer dizer qualquer coisa, mesmo que seja só para mim e não para outras pessoas que se tenham perdido a observá-lo.
Durante a tarde, não paro de olhar para o meu relógio de pulso, oferecido pela minha única tia-bisavó há cerca de três anos. Até considero que aquilo que me contam é interessante, mas na verdade não me apetece muito estar ali, porque a hora aproxima-se.
Terminado o martírio, verifico se está tudo bem, se tenho tudo no sítio, se estou ainda apresentável, se não perdi o charme com coisas mesquinhas que entretanto aconteceram à minha volta. Logo depois, volto a pegar no carro e, visto que não há mais nada a fazer, faço-me à estrada.
Ah, aquela sensação interior no meio do peito. Estou a senti-la revelar-se, à medida que me vou aproximando. Uns falam em friozinho na barriga, eu falo em centro do peito a contorcer-se. É engraçado como estas coisas assim físicas vêm ao de cima e se misturam com as emocionais. É uma ansiedade que não deixa de ser boa e apetecível, mesmo a sério.
Cheguei ao destino. A porta do lado do pendura abre-se, e esse mesmo lugar passa a estar ocupado. A porta fecha-se. Ligo a embraiagem ao motor depois de soltar o travão e arranco até ao destino onde o destino me quiser mandar.
Afinal, porque é este dia tão especial?
É muito simples, na verdade.
Estou com ela.

1 comentário:

  1. "[verifico] se não perdi o charme com coisas mesquinhas que entretanto aconteceram à minha volta." Ahah, gosto de te ver assim, gosto =D Beijinho na testa e sorrisos por aí*

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