Não sou poeta. Nunca o fui nem tão-pouco sê-lo-ei num futuro próximo ou distante. Não sei encaixar numa rigorosa métrica todas as coisas bonitas que ficam bem a alguém apaixonado como eu dizer. Não sei tão-pouco vasculhar no dicionário da minha sabedoria palavras com a mesma terminação do verso anterior que não fiz para espontaneamente poder provocar uma rima cuja sonoridade não vale nada.
Sou daqueles que acreditam mais na demonstração do que no dizer. Prefiro mostrar-te que acordo ao teu lado completamente desperto sem necessidade de aguardar algum tempo até recuperar as acuidades visual e motora depois de ter mergulhado e regressado à superfície do sono que me deixou repousado e em sossego durante mais uma noite em que perto de mim permaneceste. De que me serve olhar lá para fora, através do vidro da janela que os raios de sol beijam de compasso em compasso à medida que lá no horizonte a estrela vai fazendo a sua escalada habitual até ao céu, para te falar de coisas tão disparatadas como a inveja que as flores dos campos sentem ao ver-te passar de vestido primaveril como se tu própria fosses a flor mais bela de um jardim que não possuo?
Ah!, como te quero abraçada a mim em toda a duração dos dias de Verão e do resto do tempo, para que possa sentir-te, mais do que como minha adorada, minha somente, porque embora este seja um determinante possessivo que até pode dar uma ideia errada de mim como pessoa possessiva, não o sou, descansa, simplesmente sinto-me recheado na totalidade do meu corpo e da minha alma por saber que só a mim pertences e a mais ninguém, que só comigo partilhas o teu coração, cujo sangue quente sinto ser bombeado quando te encostas a mim, pele nua sobre pele nua, numa união que agradeço a uma graça divina que, ó sacrilégio maior!, considero estar bem abaixo do que a tua essência representa para mim.
Vem, dá-me a mão e segue-me no épico das nossas vidas, correndo que nem duas crianças tolas que ignoram tudo o que de mau há no mundo e que nos aflige e apoquenta. Não importa que a imagem de um par como nós a rolar pelos campos sob a égide do Sol seja uma coisa já mais do que vista e até enjoativa para alguns, alguns esses que poderão ser cépticos e não acreditam no amor ou então alguns esses que poderão estar já tão marcados pela canção do infortúnio que não têm coragem de se aventurar em algo de novo que lhes traga a esperança que há muito perderam e receiam vir a recuperar, sob pena de ser maior a queda de um pedestal que pretendem almejar e não conseguem. Mas essas questões a mim não preocupam. Quero-te nua sob a lua, quero-me teu vassalo, para que só a ti responda e esqueça tudo o resto. Lembras-te de quando te falo baixinho ao ouvido, num sussurro, mesmo, e te digo para esqueceres tudo e aproveitares o momento? O momento é agora. Não é mais logo, não é daqui a pouco, não foi ontem, mas sempre no presente, cuja construção depende única e exclusivamente de nós, que fugimos ao mundo. Bem que podem procurar por nós, mas bem podem também ter a certeza de que não nos encontrarão. Não somos seres físicos. Não somos dois, sequer. Somos um só e por isso mesmo como uma essência, uma alma, o que lhe quiserem chamar. Por favor, peço-te que me pares, caso esteja a levar-te à exaustão com estas palavras que não queria ter pronunciado, porque, como te disse, se é para falar ou escrever coisas bonitas e apetecíveis ao ouvido, então que venha alguém de fora e que imagine uma sua história a quem contar ou dar a ler, porque nós não temos nada para revelar ao mundo nem eu tenho capacidade suficiente para escrever semelhante coisa.
Sinto-me como um daqueles adolescentes de sorriso de esgar e de olhos muito grandes e fixos numa figura que os chamou a atenção e que ainda procuram perceber de quem se trata, qual a sua aparência, mas não só a exterior, porque essa é visível a todos, mesmo que os olhos do adolescente venham a ver a figura de um outro prisma que mais ninguém consegue adoptar. Eu, assim jovem como me descrevo, procuro saber o que escondes, que segredos guardas, procuro fazer-te um qualquer sinal que te faça olhar para mim no meio da multidão. Tento sorrateiramente destacar-me, mas acabo por não conseguir sair do sítio quando te percebo a mais formosa das que te rodeiam. E eis que um curto olhar de passagem daqueles de quem olha mas não vê surge. Rapidamente voltas atrás na tua passagem para te focares em algo ou alguém que te fez despertar. O que se passa? É a mim que vês? Consegui passar a mensagem? Não... Foi alguém conhecido que encontraste. Talvez alguém mais vistoso do que eu. Talvez um amor antigo. Talvez uma situação constrangedora. Pronto. Aí surge o meu desespero e a minha desilusão. Gostava de poder dizer que não estava de todo iludido, a fim de não poder de maneira nenhuma desiludir-me, mas não é isso que acontece. Estou prestes a rodar sobre os meus calcanhares em passo de vencido pelas circunstâncias e pelas errâncias do caminho, quando sinto uma leve brisa na nuca e um suave toque de delicadas mãos que parece atravessar-me o vestuário para directamente incidir sobre a minha pele, pele que há muito esperava o teu toque, os teus lábios, o teu sopro primaveril. Juro que quase derreti de suores frios quando senti qualquer coisa. Uma vez mais rodei sobre os calcanhares, mas não em passo de vencido, seja esse passo lá como for, que descrevê-lo em vocábulos não sei.
Aqui estás tu. Dignaste-me com a tua travessia por entre as brumas dos diferentes olhares que à distância te cobiçavam para chegares até mim. Sou daqueles que dá uma certa pena que ninguém gosta de testemunhar, por ser ainda mais penoso. Quero dizer que me considero um subterfúgio social tão grande que mal posso acreditar no facto de estares à minha frente. Não sei sequer se se trata de um facto, mero acaso, esperança para durar ou fruto do momento que não ficará por aí até ser colhido e avidamente trincado. Mas a verdade é que vieste.
Porque me olhas assim, com esses grandes olhos que com o brilho da noite se assemelham a pedras preciosas? Porque me sinto assim encandeado? Creio que à distância sentia-me seguro o suficiente para quase te lançar um olhar directo que te trespassasse o corpo, mas agora que te tenho tão perto, não sei o que fazer. É a minha reacção de marca, diga-se. Que faço agora, penso sempre para mim. Quedo-me quieto, à espera que as ampulhetas deixem roçar nos seus corpos finos, delicados e formosos mais um grão de areia, que no tempo real cai com uma velocidade extraordinária e no meu tempo parece uma eternidade. Que isso me aflija, não aflige. De todo. É certo que estou a engolir em seco, mas não quero desviar o meu olhar do teu. Noites assim é que são perfeitas. Não as creio ideais. Creio-as reais dentro da minha imaginação. E podem dizer que é a mesma coisa, só que com os termos invertidos, que eu não vou nesse género de conversas. Se na realidade não puder viver os belos cenários que pinto tendo como paleta o meu próprio arco-íris e como tela o meu mundo, então faço-o na minha cabeça, sendo esta influenciada por um coração melancólico que nesse estado consegue a melhor das inspirações.
Começa a sinfonia dos vidros que roçam uns nos outros, as facas e garfos que ficaram abandonados nos pratos cuja vibração ainda os faz tinir, as cadeiras que são arrastadas para trás numa incrível falta de delicadeza, os passos dos restantes intervenientes e as caudas dos vestidos que vão varrendo o chão da pista brilhante. Que poético da nossa parte termo-nos poupado a semelhantes ruídos.
Sim, parece que já estavas a antecipar o momento e quedaste-te junto a mim para darmos início ao êxtase nocturno daquela noite de extremo calor. O que é mais incrível é que ninguém nos viu. Desaparecemos como que feitos pó no ar. Ou foi um sonho ou... Não sei. Visto um misto de cores de origem incerta e ainda fiquei surdo de ínfimos estímulos sonoros, acompanhados de odores afrodisíacos que me deixaram arrumado para o resto da noite, que já não era noite, mas sim dia. Foi então que acordei e levei-te lá para fora agarrada a mim, como te encontrara a meu lado no momento do despertar. Senti-me como a pessoa mais feliz do mundo depois de me teres dado a tua mão nesta tão tua e única valsa.